Foi aqui que trabalhei 27 anos, na secção de peças da A. Flores, essa grande empresa caldense da qual fui um dos primeiros funcionários. Tenho a história desta firma na minha cabeça e acompanhei-lhe o percurso, sempre ligado ao seu proprietário, o senhor Abílio Flores. Hoje é com alguma mágoa que vejo que este património já não pertence ao grupo que, nos bons tempos, chegou a ter mais de 60 funcionários.
78 ANOS
CASADO, 2 FILHOS E 4 NETOS
Sou nascido, baptizado e casado nas Caldas da Rainha. Mais caldense não podia ser. Vim ao mundo em 25 de Outubro de 1937, na casa dos meus pais, na antiga rua da Electricidade (hoje rua José Saudade e Silva). Das minhas memórias de infância lembro-me de jogar à bola, à bilharda, ao pião e ao berlinde na avenida, num tempo em que quase não havia carros e quando havia a gente dizia “lá vai um!”. Os miúdos brincavam livremente. Eu ia muitas vezes à estação de caminhos-de-ferro visitar o meu pai, que trabalhava nas oficinas das locomotivas no local onde está o depósito da água.
Quando chegou a idade de ir para a escola, fiz a 1ª classe com o professor Lalanda (pai do actual provedor da Misericórdia das Caldas) e depois fiz a 2ª, 3ª e 4ª classe na antiga Praça do Peixe. Dali fui para a Escola Bordalo Pinheiro fazer o 2º ciclo e o curso industrial. Ficava ali atrás do Chafariz das 5 Bicas e foi no chafariz que eu fui “baptizado” com uma grande molha, que era uma forma de praxar os mais novos. Acho que hoje os estudantes da ESAD também fazem o mesmo.
O meu pai era um homem de uma só palavra e avisou-me: “hás-de estudar enquanto não chumbares. Se chumbares vais logo trabalhar e estudas à noite”. Eu descuidei-me no 2º ano do ciclo e não houve meias medidas. O meu pai falou com o pai do senhor Abílio Flores e fui aceite como paquete na firma que está na origem do que viria a ser aquela grande empresa.
Estávamos em Junho de 1952 e ali num primeiro andar da Praça da Fruta, por cima da papelaria Pelicano, funcionava a CLOZAQUE, assim chamada devido aos nomes das namoradas dos três sócios: Clotilde, futura mulher do Abílio Flores, Zázá namorada do Pereira Brazão e infelizmente não sei o nome da senhora que viria a casar com o terceiro sócio, José Luís Campos.
A Clozaque era só um escritório que tinha a representação da Peugeot, dos faqueiros Guimarães, da Gás Cidla, dos óleos Sacor e de umas peças de automóveis. Pouco depois a empresa mudou-se para a rua Sangreman Henriques onde passou a ter um stand.
Foi ali que comecei a trabalhar. Eu tinha 14 anos e fui admitido como paquete. Lembro-me como se fosse hoje das palavras do senhor Abílio Flores: “Carlos, eu quero um trabalhador sério e honesto e o resto não preciso de dizer mais porque de quem és filho eu sei”.
COMECEI POR VARRER O ESCRITÓRIO E FAZER RECADOS
Comecei por varrer o escritório e fazer recados. Mas também distribuía o gás e visitava as oficinas de automóveis para vender peças. Eu ganhava 100 escudos (50 cêntimos) por mês e dava-os à minha mãe que depois me dava 25 tostões (1,25 cêntimos) que era quanto custava uma entrada no cinema Ibéria ou no Pinheiro Chagas.
Por essa época havia uma tertúlia no café Capristanos que era frequentada pelo senhor Flores, os irmãos Capristanos, o Dr. Rosa (dono da farmácia Rosa), o Luís Girão (empresário de electrodomésticos), o Albino Castro (ligado aos acessórios para calçado) e mais uns quantos que constituíam a fina flor das Caldas. Uma elite económica que marcou a década de 50.
Os irmãos Capristanos tinham ao lado da estação das camionetas uma agência das marcas Austin e Borgward, e também de alguns electrodomésticos que na altura eram produtos que começavam a chegar à classe média. Havia os aspiradores Hoover, os fogões Leão os esquentadores Junker. E foi tudo isto que os Capristanos passaram para o senhor Abílio Flores num negócio que representou para este o grande salto empresarial e a expansão da firma.
Eu entretanto estava com 17 anos e já não era paquete. Tinha tido sucesso a vender peças e fiquei responsável pelos acessórios para automóveis e pelo electrodomésticos.
E entretanto veio a tropa. Com 20 anos assentei praça em Lisboa no Batalhão de Telegrafistas onde fiz o curso de sargento miliciano. Quando acabei deram-nos a escolher onde queríamos ser colocados e eu pus em primeiro lugar Macau e Timor. Eu queria viajar, conhecer mundo, mas… acabei colocado em Lisboa e precisamente no mesmo batalhão onde fizera a recruta. Fiz, pois, uma tropa muito sedentária, ao contrário do que era normal na época em que os rapazes percorriam os quartéis do país enquanto durava o serviço militar.
Passei à peluda (disponibilidade) como 1º cabo em Outubro de 1959 e é claro que voltei para o Abílio Flores, para as minhas peças, para as vendas, para os automóveis e electrodomésticos.
Mas em 1961 sou mobilizado, agora já como sargento miliciano, para ir para a Índia. Fui formar batalhão para Lisboa, desta vez contrariado porque eu entretanto gostava muito do meu trabalho e de viver nas Caldas e já não me apetecia ir em aventuras para o outro lado do mundo. Felizmente para mim, a História estava do meu lado. Nesse mesmo ano dá-se a invasão do Estado Português da Índia e acabamos desmobilizados.
Regressei novamente às Caldas da Rainha e à firma Abílio Flores, Lda.
Três anos depois, já com 27 anos, casei-me com a Maria Natália, uma rapariga caldense com quem namorava. Só nessa altura saí da casa dos meus pais e fui viver para a rua Projectada à rua da Estação. A minha vida ficou definitivamente estável. Ia a pé para o trabalho e continuava ao serviço da firma a comprar e a vender peças e acessórios para automóveis, a negociar com fornecedores e clientes, a ter cuidado com a gestão de stocks porque não podiam faltar mercadorias para o público nem se podia deixar criar monos nas prateleiras.
Em 1971 a firma instalou aqui a secção de peças. Vim para cá chefiá-la e aqui fiquei até à reforma. Este período coincidiu com o de maior expansão da empresa e também do meu sucesso profissional. Orgulho-me de ter ganhos imensos prémios dos representantes das marcas: da General Motors, da Ford, da Sonicel, da C. Santos.
Comecei também a ir a feiras internacionais e a expensas da empresas estive várias vezes em Itália, França e Alemanha. Conheci muita gente ligada aos automóveis, às peças, componentes, acessórios, montei uma rede de contactos que foi sempre muito útil à firma. Hoje em dia acho que chamam a isso network.
Nos anos 90 o grupo era composto pela A. Flores, a Florescar, a Floresauto e as representações Clozaque (ligadas aos seguros). Chegou a ter mais de 60 funcionários.
ESPECIALISTA EM PEÇAS PARA AUTOMÓVEIS
Entre os meus primeiros anos de “especialista” em peças para automóveis e o final da minha carreira, muita coisa mudou. É certo que velas, filtros, correias, rolamentos, calços, pastilhas dos travões não sofreram grandes alterações. Mas ao nível dos automatismos, as alterações foram enormes: as caixas de velocidades, a parte eléctrica, os automatismos, as novas tecnologias. E os óleos? Quando comecei a trabalhar mudava-se o óleo ao carro em cada 2500 a 5000 quilómetros; hoje os óleos modernos aguentam 20.000 a 30.000 quilómetros.
Em 1997 foi-me diagnosticado um aneurisma e os médicos que me acompanharam disseram-me que se eu quisesse viver mais uns anos tinha forçosamente de deixar de trabalhar, no que foi comprovado por uma junta médica, no ano seguinte, que me passou à reforma.
A minha relação com o senhor Abílio Flores foi sempre excelente. Mais do que um patrão, ele era um grande amigo. Chegamos a fazer viagens de férias juntos, com as nossas esposas. Fui sempre digno da confiança e liberdade que ele me deu. Só lamento que no final, quando me reformei, ele não tivesse reagido da melhor maneira à minha saída.
Apesar de trabalhar no sector, só comprei o meu primeiro carro já quase com 30 anos. Um Renault Dauphine que, para a época, era uma maravilha. Um automóvel que, na prática, acabou a fazer mais serviços para o Caldas Sport Club do que para mim porque eu era dirigente do clube, emprestava o carro para levar jogadores e entregavam-me depois com o depósito vazio. Mas não me queixo. A vida de dirigente associativo tem destas coisas.
Também fui durante vários anos membro dos corpos sociais do Montepio Rainha D. Leonor e fui o primeiro secretário da Junta de Freguesia das Caldas da Rainha (na altura só havia uma para toda a cidade) eleito pelo povo em 1975, como independente nas listas do PS.
No Caldas, no Montepio e na Junta de Freguesia estive ao serviço da cidade e ainda hoje estou reconhecido a todos os que comigo trabalharam – não só na vida associativa, mas também na vida profissional – porque só colaborando e cooperando é que se consegue atingir as metas desejadas. E é óbvio que ainda hoje tenho saudades dos meus clientes, que sempre me estimaram e cujo confiança agradeço.
Uma vez reformado, a gente habitua-se. Brinco com os netos, leio muito, sou assinante da Gazeta das Caldas desde sempre, vejo televisão e tenho viajado muito. Em excursões organizadas para muitos países. Na tropa não me enviaram nem para Macau nem para Timor. Esperei 50 anos, mas vinguei-me – já conheço muito mundo.