Escrito a Chumbo 19

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8 e 11 de maio de 1974

“Enfim, Expandir!” dá o título a um interessante artigo, escrito no feminino, por Erica (que continuaria a colaborar com a Gazeta neste período pós 25 de Abril e que não pertencia ao grupo que detinha o jornal), que aborda os sentimentos e o ambiente que se vivia após a Revolução dos Cravos.


Publicado na Gazeta das Caldas de 11 de maio, explica que “na minha condição de ser portuguesa, vivo o momento mais emocionante da minha vida! Queria saber falar, saber escrever, ou, dizer bem alto o que vai dentro de mim. dentro dos meus pensamentos e de toda a minha alma, por «eu» ser viva, nesta grandiosa hora», tão desigual àquelas em que tenho vivido como cidadã portuguesa! Jamais eu esperava!! Sim, jamais contava em ouvir ver e sentir» o povo, este povo nosso, tão queridíssimo, pelas ruas, cantando de cravos ao peito, cravos vermelhos nos cabelos e nas mãos, unido, muito unido, cadenciado ao som duma canção livre, cantada por vozes dum povo livre! O povo pareceu-me outro, nós todos parecemos outros!! As marchas vibraram com alegria e orgulho de se ser português, português conhecido «de novo» em todo o mundo livre. Estávamos presos por iguais a nós na roça! É inaudito!!… Amarrados por carrascos, nossos irmãos de pátria!!! Como foi possível?? Foi! São agora canções cheias de amor e de paz que expandem sentimentos e pensamentos reais! – Bem vivos! São palavras e abraços; lágrimas que caiem de olhos alegres; punhos fechados, simbolizando a força», o querer que é devido ao homem digno; são os dedos em V que dizem vitória! – Aconteceram torturas, provocações, castigos medonhos, inutilizaram-se homens, mulheres jovens, moral e fisicamente… fizeram-se atrocidades… e tudo isto, a quem nunca fora bandido, nem assassino, nem ladrão, sádico, devasso, nem sequer vivia como escória à margem da sociedade, não, não, esses entes «sofredores» apenas queriam dar suas opiniões sociais, fazer uma viragem política ao seu país, melhorar, por formas mais modernas e mais humanas a situação do seu povo! Não seriam pessoas perfeitas, essas?? Não, não eram, naturalmente, mas quem é completamente perfeito? – porém, porém… suas convicções de essência então perfeita, aproximava-os dum maior Bem Universal e que existia neles, através de seus ideais e suas acções. Podem errar na prática? E certo! E quem não erra neste mundo?… Todavia, foram presos aplicando-se-lhes sofrimentos não por matarem ou roubarem, nem por actos de menos humanidade, e sim, repito, pelos livres pensamentos mais justos e amoráveis para a formação duma mais correcta e integra sociedade portuguesa!! Haverá dificuldades!! Haverá desentendimentos e talvez confusões na mistura dos partidos políticos, mas tenhamos fé e coragem para esperar e tudo se recomporá. Uma represa que fendeu… Uma comporta que rebentou… Agora é quase o dilúvio… – E a ansiedade de dirigir o caudal de água límpida» para os leitos sequiosos dos rios, ribeiros e fontes!… Urge irrigar, generosamente, as terras sedentas de alimento fresco e vivificante… Há muito trabalho a fazer! É necessário boa vontade! união e paz! Afaste-se a «erva daninha» que tenta infiltrar-se no solo que se deseja limpo e bem semeado de trigo… e cravos e papoilas vermelhas!!! Alerta com esse «doce marasmo» de quem não tem pressa de revolver a terra para que ela não produza muito… Há sempre a quem não agrada (infelizmente) que todos comam dos mesmos frutos em igual abundância. Vamos cada um de nós trabalhar, com o fim de mantermos o nome do nosso Portugal, na vanguarda dos países mais prósperos e mais dignos e, sempre em frente, pela Paz e pelo Bem da Humanidade. (Esta, com todas as suas cores de pele, com todos os seus arreigados hábitos de raça e, com todo o respeito pelo «pedaço de chão» que a cada povo lhe cabe por leis inteiramente universais)”.

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Termina esta crónica, assinada por Erica, com a seguinte afirmação: “Viva esta linda nossa Pátria”.

 

DEMISSÃO DO PRESIDENTE DA CÂMARA
Entretanto a situação começa a desmoronar-se: “Pediu demissão o Presidente da Câmara”, podemos ler na Gazeta do dia 11 de maio. “Na passada segunda-feira solicitou a exoneração do seu cargo de presidente do Município Artur da Conceição Capristano ficando a substitui-lo o vice-presidente José Luís Caetano”. Recorde-se que depois do 25 de Abril de 1974, Artur Capristano voltaria à Câmara Municipal eleito como vereador pela mão do PSD, tendo tido um desempenho como vereador do Turismo muito agradável e construtivo, dado o seu conhecimento do setor.

História é também a constituição da Comissão da CDE depois de uma reunião, muito viva, promovida no Hotel Lisbonense.

 

PRIMEIRO DE MAIO
A Gazeta das Caldas conta também como foi vivido o primeiro dia do trabalhador em Liberdade na edição do dia 8, que trazia na 1ª página uma série de frases democráticas que o jornal passou a inserir, de Franklin, Camões, D. António da Costa e outros e uma fotografia da Junta de Salvação nacional, enviada de Lisboa.

“Pelas 16 horas de quarta-feira passada concentraram-se na Praça da República milhares de pessoas. E tudo principiou pela colaboração da Sociedade Columbófila Caldense: a largada de pombos-correio que, esvoaçando, pairaram sobre a multidão como símbolo de Paz e de Alegria. Nas janelas dos Paços do Concelho presente a Comissão Democrática Eleitoral através dum seu representante que leu o texto de adesão à Junta de Salvação Nacional. Depois usaram da palavra com vibrante entusiasmo representantes dos vários sectores do trabalho, que foram calorosamente aplaudidos. Foram eles um estudante, uma dona de casa, um agricultor, um estudante, um metalúrgico, um empregado comercial e o presidente do Sindicato (secção das Caldas). Dois oficiais do Exército que em 16 de Março faziam parte da coluna militar percursora do Movimento de 25 de Abril apareceram depois às janelas dos Paços do Concelho e foram delirantemente ovacionados. Formado longo cortejo desfilou este pelas ruas da cidade com o maior civismo e ordem, entoando o hino nacional e empunhando cartazes, dísticos e bandeiras. Assim foi comemorado o Dia do Trabalho nas Caldas num ambiente de euforia e concórdia o qual foi também aproveitado para a análise dos problemas dos trabalhadores e enunciação das suas reivindicações”.

 

OS INTERESSES DO POVO
O jornal apresenta-nos “Os interesses do povo”, que é um interessante manifesto reivindicativo dos caldenses, que identificam o que mais os aflige e o que mais anseiam. “Dois problemas fundamentais entre muitos que se focalizam no Povo do Concelho ainda que comuns ao do País. A necessidade urgente duma remuneração que permita conceder a cada família um esteio seguro de vida; a necessidade, também urgente, de dispor de tempos livres para o exercício de actividades de auto-educação (política, nomeadamente) culturais, desportivas e recreativas. Sabemos bem que tais problemas não se podem resolver num ápice embora tenhamos a certeza de que virão a ter solução porque a tiveram nas outras comunidades nacionais europeias (pelo menos) e Portugal é Europa. Salário mínimo compatível. Cada português e cada portuguesa precisa de auferir vencimento que lhe chegue para viver com dignidade. Ora tal não acontece visto que os ordenados são quase todos insuficientes e as dificuldades, enormes para que cada família se alimente, se vista e se acomode com essa dignidade. Alojar-se, alimentar-se, vestir-se nem sequer é viver é vegetar. Muitos e muitos de nós haveremos, mesmo assim, de cuidar disso apenas em preocupação cotidiana pois a existência se divide para esses entre trabalho e repouso. Pior: não se descansa porque se trabalha, descansa-se para poder continuar a trabalhar. O leitor pensou já ou está a sentir, mesmo, a angústia de quantos nem aos domingos, nem aos sábados dispõem de si mesmos porque carecem, nesses tempos livres, de trabalhar (nas próprias ou noutras actividades) a fim de acrescentar ao ganho certo o que importa acrescentar-lhe para poder sustentar a familia? Eis interesses do Povo que precisam de merecer a melhor das atenções. E há muitos mais a definir, desde as carências habitacionais às deficiências do Ensino e da Saúde”.

 

ASSOCIAÇÃO COMERCIAL
Na edição do dia 8 de maio encontramos um comunicado da direção do Grémio do Comércio dirigido à Junta de Salvação Nacional onde lemos que, “confirmando o nosso telegrama desta data, informamos Vossa Excelência de que esta direcção deliberou em reunião extraordinária de 30 de Abril de 1974 pedir a atenção dessa Excelentíssima Junta para o seguinte: 1. Após o cativeiro mental de 48 anos, que a Nação acaba de viver sentimos que do  conjunto do povo trabalhador de Portugal fazem parte todos os comerciantes e muito especialmente os pequenos e médios comerciantes. 2 As dificuldades que estes enfrentam não diferem antes, por vezes, superam as da restante massa trabalhadora. 3 Essas dificuldades ou sejam os imensos sacrifícios problemas e  rabalho intensíssimo e perseverante somam-se às responsabilidades, aos compromissos e  às incertezas em relação ao futuro com os consequentes riscos económicos. 4- Sobressai a  falta de uma verdadeira previdência que dê amparo na doença e na velhice assim como  todo um cortejo de carências que de modo nenhum são diferentes das dos demais trabalhadores. 5-A acrescentar a tudo isto, há a necessidade de dignificar a profissão de  comerciante de modo a que, de uma vez para sempre, deixem os comerciantes de ser considerados como marginais fautores de todos os problemas económicos do País. Estas  considerações são fundamento do que passamos a pedir: a) leis justas e honestas que regulamentem o exercício da profissão de comerciantes de modo a que a uma máxima liberdade corresponda uma máxima responsabilidade. b) equilibrio e ponderação nas reinvindicações salariais de modo que os salários sejam acordados segundo as possibilidades daqueles que têm que os satisfazer. c) horários de trabalho consentâneos  com as características específicas de cada região e com as de uma Nação que só há seis dias renasceu e por isso precisa de trabalhar, não de descansar. d) concessão de liberdade ao comércio para o estudo dos seus problemas específicos e resolução deles de acordo com a vontade, assim democráticamente formulada, do que os vivem e sentem após um longo  período de irresoluções e incertezas. Eis senhor presidente o que solicitamos e o que  pedimos esteja sempre presente no espírito de todos e dos futuros governantes em  especial, a bem do Povo no qual têm os comerciantes a honra de estarem integrados. Apresentamos a Vossa Excelência a expressão dos nossos melhores cumprimentos”.

Na edição seguinte, nova menção ao Grémio:“A Associação Comercial (de belas tradições) voltará a existir?” questiona a Gazeta. “Com a transformação provável dos grémios em associações livres de classe é de admitir que seja restabelecida a antiga Associação Comercial, dissolvida em 1940. Tal instituição teve papel preponderante e dinâmico no concelho, durante toda a sua existência”.

 

NOVOS RUMOS
Quando referimos que o ano de 1974 foi muito relevante para o país, é algo que a maioria compreende e conhece, mas este foi também um ano de importantes mudanças na Gazeta das Caldas. Algumas foram apresentadas nesta edição, sob o título “Novos rumos”, numa tentativa de evitar a alteração radical da orientação do jornal.

Nesta edição explicava-se que este jornal se transformaria “em veículo de Educação Política. Na medida em que a expressão possa ser pretensiosa em relação à nossa capacidade de ensinar, preciso é esclarecê-la. Para tanto basta se diga que pretendemos, sem representar qualquer corrente de pensamento político, ficar ao serviço de todas como meio de comunicação dos seus adeptos com o leitor. Haveremos de ser, como foi já escrito nestas colunas, o Arauto do Povo. Porque «O Povo quere um jornal seu e que sirva os seus interesses. Isto foi escrito, nos dias de júbilo que marcaram na História as datas de 25 de Abril e de um de Maio, na fachada do prédio que serve de instalação ao periódico. Essa passará a ser a nossa divisa. Integra-se na vida política do País a vida política desta comunidade regional. Pois que nem só de política vive o Homem, as reivindicações do Povo e as dos Trabalhadores ter-nos-ão como eco. Reivindicações do Povo: seja as inseridas no contexto das pequenas comunidades locais que são os bairros, as zonas citadinas, as aldeias, os grupos profissionais, culturais, desportivos, recreativos etc., seja as do próprio indivíduo e as das famílias na sua justa reacção às injustiças como afirmação activa de todos os direitos de participação.

Reivindicações dos trabalhadores: Pois é o trabalho a única fonte de vida e a única segurança duma Pátria. A ele tudo se resume: na economia. no social, no político. Importa, pois, conferir aos trabalhadores mormente aos simples obreiros mas também aos escritores, aos jornalistas, aos comerciantes, aos industriais, aos médicos, aos engenheiros, etc. a primazia no respeito e nas atenções da comunidade. Sem, no entanto, usar de aviltantes discriminações. Do mesmo modo que haveremos de ser Arauto do Povo, também nós seremos em cada momento, o instrumento dum contacto íntimo entre servidores do Povo e o Povo. No sentido de conferir absolutas garantias aos caldenses do seguimento sem equívocos da orientação definida: 1º – a direcção do jornal passa a ser assistida, com direito a voto, por todos os que o produzem, empregado administrativo, trabalhadores gráficos e colaboradores que queiram participar; 2º – a administração ficará totalmente subordinada às entidades e órgãos indicados até ser entregue, totalmente, a essas entidades e órgãos; 3º – a propriedade do jornal, que é duma sociedade comercial, será transferida para os trabalhadores que o produzem e só êles receberão os lucros, se os houver, da actividade editorial; 4º – O bisemanário mudará de nome e de formato a partir de Outubro próximo e não já por carências de, ordem técnica e económica que se espera poder superar antes desse mês”.

Tudo isto fracassou como iremos ver nos próximos números. Terá sido uma tentativa fracassada de controlar os danos das alterações em curso em toda a sociedade. Mas é interessante analisar estes textos à luz do que sabemos hoje e de todo o processo que decorreu desde 1974.

 

O PAPEL
Tal como referimos no último Escrito a Chumbo, as carências no fornecimento de papel eram uma realidade que afetava a produção do jornal. Esta semana a Gazeta conta que estava “provisoriamente e durante escassas semanas, com o problema solucionado pois conseguimos um fornecimento de papel que nos dá para as edições próximas. O preço é que é muito superior”.
É também nesta edição que se dá a conhecer a mudança da Gazeta das Caldas de bissemanário para semanário, que não foi imediatamente concretizada. “O folhetim passa a publicar-se só aos sábados”, intitula uma peça que esclarece que “para podermos dar diferente dimensão aos textos noticiosos reduzimos a uma vez por semana a edição de sábado a inserção do folhetim”.

 

OS DESMENTIDOS

Começam também a aparecer anúncios de pessoas que desmentem pertencer à PIDE. No caso temos um caldense residente no Bairro das Morenas que “vem por este meio
desmentir categoricamente o boato posto a circular segundo o qual teria feito parte da  extinta DGS ou PIDE. Mais declara, por sua honra, que jamais pertenceu aquelas instituições quer como agente ou informador e que, em face de tal boato se dirigiu  voluntariamente às autoridades para completo esclarecimento. Tais afirmações continuem a ser feitas terão que provar judicialmente”, lê-se.

Para a semana trazemos mais artigos escritos a chumbo. Até lá!

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