Festa do Santo Antão em Salir de Matos é um exemplo de envolvimento da comunidade e tem permitido fazer obras

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Durante estes três dias o chouriço é rei em Salir de Matos
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Três mil quilos de carne foram transformados em chouriços, vendidos ao longo dos três dias de festa. O restaurante recebeu mais de mil pessoas. Lucros servirão para requalificar a capela mortuária da freguesia, dotando-a de melhores condições

Em Salir de Matos, freguesia rural do concelho das Caldas da Rainha, a Festa de Santo Antão é a grande festa do ano e é um exemplo de envolvimento comunitário em prol de um bem comum. Anualmente perto de uma centena de voluntários dá do seu tempo para ajudar na organização do evento, que tem permitido angariar fundos para as obras mais urgentes.
Entre os voluntários encontramos uma grande diversidade de idades e… muito boa vontade. Os mais experientes ensinam os que não sabem na preparação dos chouriços e, depois, a servir.

A procissão, que está na génese da festa, decorreu na manhã de domingo

A festa arrancou na sexta-feira, dia 12, com animação, e prosseguiu durante o fim-de-semana. No domingo houve missa, seguida de procissão (a origem da festa, que ainda se mantém, embora atualmente já não se benza o gado), com dezenas de pessoas, e uma tarde de folclore.
O padre Filipe Sousa explicou à Gazeta das Caldas que “com a pandemia interrompemos e no ano passado retomámos”, acrescentando que “é bom voltarmos à tradição e a celebrar o Santo Antão, que é o patrono dos animais, porque era eremita, vivia no deserto”, nota o padre, esclarecendo que vivia na solidão e no silêncio, que é a diferença entre os eremitas e a maioria, que vive na solidão, mas no ruído. “Solidão todos a temos, todos temos que viver com ela”, realça.
O pároco diz que acredita que antigamente “também se tenha feito aqui a benção dos animais, mas agora já não se faz”. Ainda assim, frisa, “mantemos aquilo que é específico aqui da festa Santo Antão em Salir de Matos que é todo o processo de fazer os chouriços e depois a venda”.
A preparação da festa de Santo Antão começou “logo a seguir ao ano novo, este ano foi no dia três de janeiro, uma quarta-feira, com o corte das carnes e, depois, no sábado, dia seis, com o enchimento dos chouriços, que depois estiveram em fumeiro.
O evento envolve perto de uma centena de voluntários, mas “podem sempre vir mais”, convida o pároco, frisando que “estas festas têm sempre também o projeto de obras aqui da paróquia e a próxima que estamos a pensar iniciar e que já temos projeto é a reabilitação da capela mortuária”.
O padre mostra-se esperançado que a empreitada, que tem um custo estimado de 50 mil euros, se possa iniciar no mês de março. “A capela foi feita há 40 anos e nunca foi mexida, é muito fria e queremos isolar o chão, colocar betonilha e uma caixa de ar, mudar o ladrilho, instalar ar condicionado, mudar também as janelas e baixar o pé direito, assim como criar casas de banho para os dois sexos (só tem uma atualmente) e melhorar a sala de apoio”, esclareceu Filipe Sousa. “Queremos dotá-la de melhores condições e dar conforto a quem usa, que infelizmente todos usaremos”, resume. A obra deverá estar pronta em cerca de dois meses. “Quanto mais rápido melhor, porque uma capela mortuária está sempre a ser usada”. O pároco nota que março poderá ser uma boa altura para iniciar as obras. “Os meses de inverno são sempre difíceis quanto a funerais”, nota, salientando que esperam que a empreitada decorra no “mínimo tempo possível”.

Cerca de uma centena de voluntários dá do seu tempo para organizar a festa
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Três mil quilos de carne
Este ano os voluntários preparam três toneladas de carne que foi depois transformada em milhares de chouriços.
José Sábio, da organização do evento, explicou ao nosso jornal que, apesar da chuva, “conseguimos garantir a realização de tudo, nomeadamente a procissão e o baile”. Numa análise ao evento disse que “este ano correu bem. Está dentro da média das últimas cinco edições da festa, tirando o ano passado, que foi fora do normal, porque foi o primeiro pós-pandemia e havia muito interesse”.
O frio foi contornado com uma grande fogueira. E o convívio foi constante durante os três dias.
Enquanto voluntário, José Sábio admite que estes são dias “muito intensos e cansativos, mas é um fim de semana que faz parte da tradição”. Por exemplo, nos fornos, na madrugada de domingo, saiu um turno às cinco, quando acabou a festa e a essa hora entrou outro para preparar o último dia de festa. “Os fornos praticamente não arrefeceram, cozeram 24 horas seguidas”, nota.
A tradição de fazer pão ao domingo (120 quilos de farinha a cada semana) tem-se mantido na freguesia e é, junto com a organização da festa, uma das fontes de receita para as melhorias na freguesia. “Estamos com alguma dificuldade em encontrar pessoal, porque é um trabalho um bocadinho ingrato, porque para as pessoas conseguirem ter pão quente desde as oito da manhã à uma da tarde, é preciso vir às cinco da manhã. No inverno é penoso, com chuva e frio, até porque Salir de Matos localiza-se numa cova e faz muito frio. Custa levantar ao domingo, dia de descanso e de estar com a família, mas graças à participação de todos temos conseguido manter essa tradição que é uma fonte de receita importante. As obras estão à vista e são fruto do trabalho de todos que não fica armazenado”, realça. Depois da capela mortuária será preciso melhorar o piso do salão, aponta.
Os fumeiros são atualmente a 100 metros do local onde preparam os chouriços, num terreno onde será, no futuro, a casa paroquial. Mas nem sempre foi assim. O terreno onde foram construídos foi adquirido ainda antes da pandemia e foi uma importante melhoria, evitando que transportassem os chouriços em carrinhas de um lado para o outro.

Chouriço é rei
A festa do Santo Antão em Salir de Matos conta com um restaurante que em três dias serviu mais de mil refeições. “O chouriço é rei!”, exclama Isabel Almeida, que é quem coordena a zona de refeições. “Temos 250 lugares e no jantar de sábado encheu duas vezes, com cerca de 500 refeições. Na sexta e hoje [domingo] enchemos a sala, pelo que tivemos mais de mil refeições ao longo dos três dias”.
O chouriço aparece, claro, assado, ou no pão, mas também na sopa da pedra e no caldo verde. Da ementa faz ainda parte o frango assado, bem como as sobremesas, as filhóses e o café d’avó.
Em relação à coordenação desta equipa de voluntários diz que “as pessoas já fazem isto há muitos anos”, o que facilita o trabalho. Nota também, com agrado, o envolvimento dos jovens na iniciativa, por exemplo, a servir às mesas. “Uma das grandes dificuldades é juntar as pessoas e motivá-las para vir, tentar que venham ajudar, porque senão não se conseguia fazer isto”, alerta. ■

 

A propósito do Santo Antão de Salir de Matos

Carlos Querido
Escritor

No recebimento do Prémio Nobel de Literatura 1998, José Saramago proferiu o que terá sido um dos mais belos e tocantes discursos ouvidos na Academia Real Sueca, invocando a humildade das suas origens e a terna memória dos avós, gente pobre do Alentejo profundo, dizendo, nomeadamente: que o avô, que não sabia ler nem escrever, fora o homem mais sábio que conhecera em toda a sua vida; que no inverno, quando o frio da noite apertava, os avós iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis, levando-os para a sua cama a fim de os livrar do enregelamento; que esse gesto, não sendo ditado por sentimentalismos, visava proteger o seu ganha-pão.
A citação que antecede ilustra bem a relação de proximidade da família rural com o porco, a quem era atribuída alguma semelhança orgânica traduzida no ditado popular: «Se queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco».
De um modo geral, todas as famílias criavam o seu porco, procedendo-se ao ritual da ‘matança’ no inverno, sendo este animal de fundamental relevância para a subsistência do agregado.
Se me é permitida uma pequena nota biográfica, na residência que me foi atribuída pelo Ministério da Justiça na minha primeira comarca, na Beira Interior, havia um “curral do porco”, que fora utilizado por famílias de colegas mais antigos.
Face à relevância do porco na alimentação familiar, a sua doença era uma ameaça de fome para as famílias pobres.
De acordo com a tradição cristã, Santo Antão, um célebre eremita que viveu por volta do ano 250, é o protetor dos animais domésticos, sendo representado na iconografia tradicional com uma longa barba branca, com uma vara com sino, e acompanhado por um porco.
Venerado no dia 17 de janeiro na liturgia católica, Santo Antão é celebrado em Salir de Matos no fim de semana que antecede o seu dia, com uma festa com grande tradição.
É a grande festa da paróquia, o que não deixa de ser curioso, considerando que não é este o seu santo padroeiro.
Vila e concelho dos coutos de Alcobaça, Salir de Matos recebeu o seu primeiro foral (Carta de Povoação) no reinado de D. Dinis, no ano de 1321, confirmado pelo foral concedido por D. Manuel I, no ano de 1514, permanecendo concelho até ao ano de 1836, data em que se tornou freguesia das Caldas da Rainha.
Edificada no ano de 1565, a Igreja de Salir tem Santo António como padroeiro, desde a sua origem.
Em visita à vila e concelho de Salir do Mato, no ano de 1780, Frei Manuel de Figueiredo, cronista mor de Alcobaça, descreve pormenorizadamente tudo o que vê, e na sua deslocação à Igreja refere apenas a existência das seguintes imagens: de Santo António, de Santa Catarina, e de Nossa Senhora do Rosário.
Do relato do monge cronista se conclui que, ao contrário do que acontece atualmente, na referida data não havia na Igreja qualquer imagem de Santo Antão.
Celebrada no dia 13 de junho, a festa de Santo António foi durante séculos tradição da paróquia de Salir, sendo a referida data considerada “dia santo de guarda”, o que interditava os fiéis de trabalhar no campo nesse dia.
Desde há cerca de setenta anos, a comunidade paroquial passou a celebrar a Festa de Santo Antão, inicialmente com uma procissão, durante a qual o pároco benzia os animais domésticos.
Como justificação para a maior relevância do culto de Santo Antão, numa paróquia que tem Santo António como padroeiro, deverá ter-se em conta, entre outras eventuais razões, a crença dos antigos paroquianos na vocação de Santo Antão para a proteção dos seus animais, benzidos nas antigas celebrações, tão importantes para a subsistência das famílias.
Companheiro inseparável de Santo Antão na sua imagem iconográfica, o porco continua a ser o rei da festa, convertido em saborosos chouriços com o labor e a dedicação de muitos paroquianos, que todos os anos se empenham em manter uma tradição que honra e prestigia a sua terra. ■

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