Jorge Sobral começa a oposição ao regime no Conjunto Cénico Caldense, levando-o a aderir ao PCP, do qual seria funcionário após o 25 de Abril. Tornou-se militante em 1972 e entre 1974 e 1977 viveu por dentro o Período Revolucionário em Curso
Foi no teatro amador que Jorge Sobral começou a ter consciência política e a descobrir e aprender coisas que não ouvia em casa. Assim começa a história da entrada na política de um caldense que acaba por entrar no PCP, partido do qual, entretanto, decidiu sair, mas pelo qual continua a nutrir “grande respeito”.
“Tinha 17 anos, estudava na Escola Comercial e fazíamos teatro. Na altura o CCC (Conjunto Cénico Caldense) tinha uns olheiros, como no futebol, que acharam que eu tinha jeito e convidaram-me para integrar uma peça, O Vagabundo das Mãos de Oiro, do Romeu Correia”, relembra o caldense, que se começa a aperceber de “algumas dinâmicas” que lhe tinham “passado ao lado”. Os “olheiros” eram José de Sousa e Carlos Garrido, dois destacados oposicionistas caldenses.
Era “um miúdo” e “andava encantado por poder acompanhar malta mais velha”, como Ferreira da Silva, José Aurélio ou Figueiredo Sobral. “Íamos para o Inferno da Azenha, que ainda não estava aberto ao público, onde se reuniam os intelectuais das Caldas e não só. Foi lá que vi pela primeira vez um poster do Che Guevara. E foi lá que ouvi pela primeira vez o Zeca Afonso, o José Jorge Letria, o Luís Cília, o Adriano Correia de Oliveira”, evoca.
Jorge Sobral faz teatro no CCC, aproxima-se da JOC [Juventude Operária Católica] e passa a estudante-trabalhador, pois, entretanto, arranjara emprego no escritório da Garagem Abrantes, que tinha um posto de combustíveis e ficava no Largo Heróis da Naulila. No entretanto, faz uma incursão por uma atividade ainda hoje pouca ortodoxa para um certa esquerda: dedica-se à tauromaquia, pega touros com os forcados da Nazaré.
Em 1968, com 21 anos, é chamado para a tropa, o que na época significa também ir para a Guerra do Ultramar. Mas o mancebo que assenta praça em Aveiro revela-se bom aluno, tem as melhores notas, é destacado para Leiria e depois consegue vir para as Caldas, onde, no RI5, tem uma “tropa santa” – almoça, janta e dorme em casa todos os dias. E não vai para África porque as boas notas que tivera o livram da mobilização.
Com tempo livre, continua ligado ao CCC e agora também à Gazeta das Caldas, onde escreve alguns textos com o beneplácito de Domingos Del Rio e José Eduardo Martins Pereira, então ligados ao jornal.
A entrada no PCP ocorre em 1972, quando passa a ser dirigente do Sindicato dos Caixeiros, um dos poucos sindicatos independentes da época. A adesão a um partido que operava na clandestinidade não era feita com um cartão. O caldense – que, em rigor, nasceu em Lisboa e viria com poucos meses para as Caldas – só conhecia o seu recrutador e controleiro, Francisco Lancinha.
“Tinha uma visão muito parca do partido e não sabia muito do seu funcionamento. Só conhecia o meu controleiro e não fazia parte de nenhuma célula. Mas via no PCP uma organização que tinha gente que remava contra a maré, gente que eu sabia estar ligada à atividade laboral, cultural e sindical cá das Caldas. Era jovem, mas tinha consciência de classe”, nota.
Francisco Lancinha dá-lhe um livro pequeníssimo, feito em papel mortalha, que Jorge Sobral guarda sempre no bolso. Chamava-se Se Fores Preso Camarada. “Era para nos encorajar a resistir e a não denunciarmos os camaradas, caso fôssemos presos. Mas, um dia, já casado e com duas filhas, vi uma ramona em frente à minha casa, pensei que me vinham buscar e rasguei o livro e deitei-o na sanita. De pouco adiantaria, porque tinha livros e discos proibidos em casa”, assume. Porém, tudo não passará de um susto.
Casa em 1972, com 25 anos, e passa a trabalhar no Montepio – Rainha D. Leonor. É lá que, dois anos depois, tem conhecimento do 25 de Abril. O dia foi passado fora do escritório, entre a Praça da Fruta e o Café Central, à época o epicentro da atividade social e política local. Enquanto não se sabe de que lado está o golpe e qual o desfecho da revolução, uma das preocupações dos democratas ali concentrados é a proteção das esposas dos militares do 16 de Março, que tinham os maridos detidos e os presos políticos do forte de Peniche. Nas 48 horas seguintes, o jovem comunista quase acampa em frente à fortaleza, pressionando para que o novo poder liberte todos os prisioneiros, sem exceção. Como viria a acontecer.
Entre 1974 e 1977 mergulha no PREC (Processo Revolucionário em Curso) como militante do PCP. Participa nas primeiras eleições democráticas com um intenso trabalho partidário, abre uma sede do partido em A-dos-Negros, de cujo núcleo fica responsável, desdobra-se em reuniões, muitas delas na sede do partido, que, à época, ficava na Avenida 1º de Maio.
Ainda em 1974 viaja a França para a festa do L’Humanité (jornal do PCF). “O PCP, ainda com as cautelas da clandestinidade, não tinha um espaço próprio, mas havia um Pavilhão de Portugal onde se juntavam os democratas em geral e onde eu encontrei lá o José Luiz [que se tornaria diretor da Gazeta] e o Henrique Neto”, sublinha.
As responsabilidades que acumula no partido levam-no a despedir-se do Montepio e passa a funcionário do PCP. Uma decisão difícil para um homem de 30 anos, já casado, com duas filhas e que deixa um emprego estável onde ganhava 5.000 escudos (24,90€) para passar a auferir o ordenado mínimo de 3.300 escudos (16,40€). Ossos do ofício. ■
Como a atividade cultural acabou por tomar o lugar da política
Em Peniche viveu uma intensa atividade cultural, que se começa a sobrepor à militância
Um funcionário do PCP tem responsabilidades geográficas e setoriais. Jorge Sobral é controleiro em Alcobaça, Bombarral e Peniche e está ligado às questões autárquicas, à agricultura, à organização da Festa do Avante.
“Era um trabalho extenuante, mas o PCP tinha, em Lisboa, uma escola onde preparava os seus quadros e os militantes mais responsáveis. Fiz lá uma semana de formação. Mais tarde, como estava ligado, em Peniche, à criação de cooperativas de pescadores, em 1978 fui enviado para a Bulgária para estudar o movimento cooperativo europeu”, relembra.
Em Sofia fica impressionado com o campus universitário onde estudam os búlgaros e os quadros técnicos e políticos estrangeiros. “A cidade era limpa, tinha bons transportes públicos, um parque com 20 campos de ténis…” lembra.
Viaja também à Hungria. É o chefe de uma delegação portuguesa que visita associações, fábricas e cooperativas agrícolas. Os camaradas portugueses são bem recebidos, o programa é intenso, Jorge Sobral também não vê nada de errado. Exceto, talvez, uma noite em que um responsável húngaro o convida para jantar em casa. O casal que o recebe parece ser, afinal, mais católico do que comunista e, tímida e discretamente, faz-lhe muitas perguntas sobre Portugal e o Ocidente…
É numa ponta do Ocidente que Jorge Sobral passa os seus anos áureos de funcionário do PCP. Em Peniche, ligado ao movimento cooperativo e autárquico, é eleito deputado municipal em 1983. Nesse período, a fortaleza alberga retornados das ex-colónias que, progressivamente, vão saindo para começar uma nova vida. O forte fica vazio e a presidente da Câmara, a socialista Fátima Pata, nomeia Jorge Sobral, Carlos Mota (empresário) e Luís Correia Peixoto (armador) para criarem um museu municipal.
O funcionário comunista, fica, naturalmente, com a secção da Resistência anti-fascista, os colegas com as componentes histórica, das pescas e renda de bilros. O Museu Municipal entusiasma-o, dedica-se-lhe entusiasticamente. Realizam encontros, conferências, colóquios, exposições, recebem milhares de visitantes. Às tantas, Jorge Sobral dá-se conta que gosta mais da atividade cultural do que do trabalho político do partido.
Os ventos que sopram de Leste trazem novidades e dúvidas. Mas ainda antes da Perestroika, é a adesão à CEE que marca o princípio de discórdia com o partido. “Portugal trilhava um caminho de aproximação à Europa que me pareceu correto e benéfico para o país, mas o partido era contra. E, pior ainda, recusava-se a discutir isso”, conta.
“Havia outra contradição que era o objetivo da ditadura do proletariado e a defensa intransigente da Constituição, tal como agora o João Ferreira fazia e bem. A Constituição defende o multipartidarismo, o Estado de Direito, as liberdades… isso era incompatível com a revolução proletária”, sublinha.
Jorge Sobral junta-se a um movimento de comunistas que quer mudar o partido por dentro e que se agrega na então chamada Plataforma de Esquerda. “Uma vez, antes de um congresso, o Comité Central mandou-nos as teses para discussão nas sedes do partido, mas nós queríamos discutir também umas teses escritas pelo Saramago, que ainda nem era prémio Nobel. Nas Caldas houve uma reunião de militantes duríssima e onde percebi que dificilmente se poderia mudar o pensamento político ortodoxo do partido”, explica. Acaba por sair. Uma decisão que, conta, não teve um momento preciso, mas que foi construída ao longo de quase dois anos de afastamento progressivo.
“Continuo a ter um grande respeito pelo partido. Não só pelo que fez pelo país antes do 25 de Abril, como pela expressão e pelo papel que continua a ter na defesa dos seus valores, sobretudo na defesa dos trabalhadores e dos mais fracos. Veja-se a expressão do movimento sindical”, justifica.
A rutura não foi solitária. Os “dissidentes” que saíram do PCP acabariam no PS e outros na UDP e posteriormente Bloco de Esquerda. Jorge Sobral é hoje militante do PS e membro da Assembleia Municipal das Caldas da Rainha. “Sou um homem cívico, já nem sei em quantas associações já estive metido. No fundo, sabia que acabaria por voltar à política e acabei por entrar para o PS no período em que [António] Guterres foi secretário-geral. Considero que sou da esquerda do PS”, sustenta. ■