O “livro” de memórias do ferroviário Mário Silva

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A CP exigia uma fidelidade absoluta, com uma disponibilidade quase total: turnos de 12 horas, trabalho nocturno, disciplina quase militar e uma autêntica servidão aos comboios e ao cumprimento dos regulamentos

Houve um tempo em que a estação das Caldas da Rainha
era um importante complexo ferroviário onde trabalhavam e viviam dezenas de pessoas e famílias. Um tempo em que a Linha do Oeste era a ligação da cidade ao resto do país e por onde viajavam pessoas e todo o tipo de mercadorias.
Mário Silva, 92 anos, é uma memória viva dessa época

Carlos Cipriano

Mário Silva, ferroviário com a categoria de “factor de 2ª” chegou em 1963 à estação das Caldas da Rainha, onde fazia turnos no cais da estação a receber remessas de mercadorias vindas dos comboios e a fazer despachos para todo o país.
Era um tempo em que a actividade económica dependia do caminho-de-ferro e a Linha do Oeste era um corredor estruturante por onde circulavam as mercadorias essenciais que alimentavam o comércio e a indústria e também por onde se escoava grande parte da produção agrícola.
Mas, além das mercadorias, o tráfego de passageiros também era significativo. Como não havia auto-estradas e os automóveis não estavam ainda ao alcance de todos, o comboio era o modo de transporte por excelência e a forma mais rápida de viajar das Caldas da Rainha para qualquer ponto do país.
Mário Silva tinha, então, 36 anos. Hoje tem 92 e uma memória prodigiosa. O ferroviário tinha chegado em Abril de 1963 às Caldas, vindo de uma pequena estação da linha do Douro. Entre Abril de 1962 e Abril de 1963, vivera com a mulher e o filho na pequena estação de Castelo Melhor, no concelho de Vila Nova de Foz Coa.
O sítio, à beira do rio Douro, era isolado. A vila ficava a 40 minutos por um caminho pedregoso, por onde só se acedia no dorso de um burro ou em carros de bois. O responsável pela estação tinha como únicos vizinhos mais dois casais de ferroviários, um casal de barqueiros que transportava os escassos passageiros entre as duas margens do Douro, e ainda um família pobre de pescadores, que viviam na própria barcaça onde pescavam.
Depois de um ano de isolamento, chegar à então cosmopolita cidade das Caldas da Rainha foi uma alegria para Mário Silva, para a mulher Maria Silva e o filho António Silva, então com 10 anos. Nos primeiros meses foram viver para uma casa no Bairro dos Arneiros, mas em breve vagou uma casa da CP e a família mudou-se para a beira da linha do comboio.
Naquele tempo, a CP era uma empresa majestática, que assegurava habitação ao seu próprio pessoal e oferecia ainda um conjunto de serviços sociais pouco comuns para a época. Em contra-partida exigia uma fidelidade absoluta, com uma disponibilidade quase total: turnos de 12 horas, trabalho nocturno, estrito cumprimento dos regulamentos, disciplina quase militar e uma autêntica servidão aos monstros de ferro e aço que deveriam circular à tabela sobre os carris.

CALDAS – UM COMPLEXO FERROVIÁRIO

Mais do que uma estação, Caldas da Rainha era um autêntico complexo ferroviário onde trabalhavam e viviam dezenas de funcionários. Mário Silva recorda-se do quadro de pessoal num turno normal de serviço durante o dia. Havia o “pessoal graduado” (um chefe de estação e seis factores) e o “pessoal braçal” (um agulheiro, um engatador e três carregadores). Doze pessoas.
E o que fazia esta gente toda na estação?
O chefe de estação era a figura máxima, que geria as escalas do pessoal, fiscalizava o funcionamento de todos os serviços e competia-lhe dar a partida aos comboios depois de verificar que os avanços tinha sido concedidos pela estação colateral (Óbidos a sul e Bouro a norte). Entre os factores, havia um para assegurar as manobras dos comboios, outro nos telefones para gerir a circulação, outro na bilheteira, outro para controlar as cargas e descargas e mais dois no cais (onde hoje funciona o Banco Alimentar) para tratar da recepção e expedição das mercadorias.
Numa hierarquia bastante rígida, o “pessoal braçal” obedecia às ordens do chefe e dos factores. No mesmo turno coexistia o homem que fazia as agulhas, o que desengatava e engatava vagões e carruagens para formar as composições, e mais três funcionários para fazer as cargas e descargas dos comboios e a sua movimentação pela estação.
A passagem dos comboios de mercadorias (um em cada sentido) eram os momentos mais trabalhosos do dia. Cada um destes comboios poderia demorar horas na estação, pois era necessário manobrar para deixar vagões nas linhas secundárias e tomar outros que ali estavam parados. E havia centenas de volumes que se carregavam e descarregavam no cais da estação. Pelo meio, era preciso assegurar a passagem dos comboios de passageiros, protegendo as entradas da estação para que não houvesse nenhuma colisão.
Mas não eram só os comboios de mercadorias que transportavam carga. Os de passageiros possuíam também um furgão onde circulavam os volumes de “grande velocidade”. Podiam ser encomendas que hoje seriam remetidas pelos CTT ou produtos perecíveis como peixe fresco, frutas e hortícolas, ou ainda animais vivos como pintos, galinhas ou coelhos, que viajavam em jaulas ou caixas de papelão.
De comboio chegavam às Caldas os jornais do dia, que o ardina Petinga apregoava com a sua voz de trovão. Os ferroviários tinham direito a um exemplar de cada jornal e o Diário de Notícias, O Século, o Diário de Lisboa e o Diário Popular eram presença assídua nas bancadas da estação. E também era no comboio que chegavam as bobines dos filmes que passavam no cinema Pinheiro Chagas e no Salão Ibéria.
Por isso, cada composição que chegava e partia das Caldas da Rainha tinha uma multidão de ferroviários que lhe prestava vassalagem, cumprindo formalidades relacionadas com a sua segurança e o transporte de mercadorias e passageiros.
O chefe de estação morava no primeiro andar do edifício principal, mas o complexo ferroviário incluía, ainda, casas ao longo da linha, onde viviam as famílias dos ferroviários e até um dormitório para o pessoal que vinha destacado de outras estações e ali vivia temporariamente. Além deste, havia ainda outro dormitório, onde pernoitavam maquinistas, condutores (ajudantes de maquinistas) e revisores. E havia até um funcionário que tinha como tarefa manter o dormitório limpo e acordar os que tinham de entrar ao serviço, de acordo com uma escala programada.

UM TRABALHO POR TURNOS

Mário Silva é, então, factor de 2ª, o que significa que terá ainda de subir na hierarquia para factor de 1ª, a fim de chegar a chefe de estação.
Na estação das Caldas começa por trabalhar nos despachos de mercadorias, mas assegura também turnos nas bilheteiras, nos telefones e na circulação.
Periodicamente, calhava ter de assegurar o turno da noite. Os regulamentos eram claros: não se podia dormir. Mas entre o último comboio da noite e o primeiro da madrugada aproveitava para se encostar num canto, embora sempre atento ao toque do telefone, não fosse haver alguma marcha especial durante a noite.
Os telefones não eram, ainda, massificados. Só as famílias mais abastadas e os estabelecimentos comerciais possuíam este objecto. Por isso, muitas notícias circulavam pelos telefones da companhia, pois a CP tinha a sua própria rede telefónica que cobria todo o país. Um dia, em Novembro de 1963, Mário Silva estava de serviço e recebe um telefonema do Bombarral: “avisa aí o Valdemar que a mulher deu à luz um filho”. A boa nova é dada ao colega que estava no turno do cais a despachar mercadorias. “Ai o meu rico menino!”, exclamou o jovem pai, que nessa tarde ficaria dispensado do serviço e apanhará o primeiro comboio para conhecer o rebento.
De vez em quando o ferroviário era destacado e ia fazer turnos para outras estações da linha do Oeste. Acompanhava-o uma cama volante, com um colchão de palha, onde pernoitava, às vezes dentro da sala de espera da estação.
Mário Silva está encantado por viver nas Caldas da Rainha, mas não se pense que antes tinha ido contrariado para a inóspita estação de Castelo Melhor. Por incrível que pareça, até tinha sido uma libertação quando, dois anos antes, soube que lhe calhara aquele posto num dos sítios mais recônditos do Douro. E por incrível que pareça até nem se importara nada de ir ganhar 1350 escudos (6,73 euros) por mês nos confins do Alto Douro quando até então estava a auferir 2100 escudos (10,47 euros) em Lisboa.

NA INAUGURAÇÃO DO METRO DE LISBOA

Para se perceber esta vontade é preciso recuar ao ano de 1959, quando o jovem ferroviário está, então, a prestar serviço na estação de Lagos. Surge-lhe a oportunidade de ir inaugurar o Metropolitano de Lisboa em Dezembro desse ano, regressando assim à capital, a um trabalho bem pago e a uma empesa recém-constituída. Para trabalhar no Metro tinham sido recrutados ferroviários da CP, a quem lhes foi dada formação para operar no novo modo de transporte.
Mas Mário Silva, apesar de trabalhar com uma moderna mesa de comando na estação de Sete Rios, num ambiente limpo e asséptico, depressa se cansa daquela rotina e de trabalhar debaixo de terra. Seis meses depois pede para voltar à CP. Sente saudades do cheiro a creosona das travessas de madeira, das estações ao ar livre, do apito dos comboios, da camaradagem com os colegas.
Para reingressar na CP era necessário esperar dois anos e, por isso, foi com alívio que viu chegar-lhe os papéis com “guia de marcha” para o Alto Douro, mas também para a vida de ferroviário a que estava habituado. É que antes disso Mário Silva já tinha trabalhado nas estações de Benfica, Torres Vedras, Sabóia (concelho de Odemira), Beja, Campolide, Amoreiras (Odemira), Sintra, Vila Praia de Âncora e Lagos. Uma vida de saltimbanco onde era fácil ter de mudar subitamente de Lisboa para o Alentejo, ou do Minho para o Algarve.

BOMBARRAL: A ÚLTIMA ESTAÇÃO

Nas Caldas da Rainha, Mário Silva trabalha entre 1963 e 1969. A ascensão a factor de 1ª obriga a nova mudança, mas, desta vez, vai parar perto, ao Bombarral, cuja estação acabará por ser aquela em que mais tempo trabalhará: 18 anos. É ali que é promovido a chefe de estação e é ali que apita a um comboio pela última vez na vida, em 1988, quando passa à reforma.
Depois de ter trabalhado e vivido em 11 estações de caminho-de-ferro é momento de assentar e dar algum repouso à mulher, que sempre o acompanhou nas andanças ferroviárias. Diga-se, porém, que a CP assegurava o transporte das mobílias do pessoal na mudança de casa. Os funcionários tinham direito a um vagão gratuito que levava os haveres para a estação de destino.
Mário Silva compra casa nas Caldas da Rainha e faz sua a cidade que o acolheu em 1963. Aos 92 anos, procura manter-se em boa forma física e psíquica mantendo rotinas que incluem a visita diária da mulher ao lar, as idas à piscina dos bombeiros (onde é o utente mais idoso) e as tardes passadas a ver televisão, a entreter-se no computador portátil ou – pasme-se! – a improvisar umas músicas com a guitarra, a viola ou o órgão electrónico.

Antes e depois na estação das Caldas…

Cinquenta e seis anos separam estas fotografias. Mário Silva, ferroviário com a categoria de “factor de 2ª”, estava há poucos meses a trabalhar na estação das Caldas da Rainha, onde fazia turnos no cais da estação a receber remessas de mercadorias vindas dos comboios e a fazer despachos para todo o país. Hoje está aposentado.