Como muitos da sua geração, Joaquim Bernardo Coito, hoje com 75 anos, também andou embarcado. Navegou pelo mundo inteiro, da América ao Japão, e quando resolveu pôr os pés em terra firme, fixou-se numa cidade industrial alemã – Osnabrük – onde trabalhou como intérprete e administrativo, tendo acabado por abrir dois restaurantes. Um deles, o Alderman, acabaria por servir de modelo para realizar o sonho da sua vida, que era abrir um restaurante nas Caldas da Rainha. A Lareira, inaugurado em 1985, é o seu grande projecto. Algo que não passava pela cabeça do rapazinho de 11 anos que em 1955 foi do Peso (Santa Catarina) para o Sanguinhal (Bombarral) trabalhar numa quinta como aguadeiro.

Joaquim Coito (nascido em 1944) ficou órfão de mãe aos sete anos. O pai trabalhava no campo e impunha-se sustentar uma prole de seis filhos, no início dos anos 50, na então isolada aldeia do Peso (Santa Catarina). Para a época, Joaquim até foi mais longe do que muitas crianças da sua idade – fez a 4ª classe. Muitas nem a escola frequentavam. Mas os estudos ficaram por aí. Com 11 anos apenas, foi para a Quinta do Sanguinhal, no Bombarral, trabalhar como aguadeiro. Uma “profissão” que consistia em distribuir água aos trabalhadores rurais.
Joaquim dormia no “quartel”, expressão que significava os armazéns onde os “malteses” (trabalhadores sazonais vindos normalmente do Centro e Norte do país) pernoitavam, amontoados, em esteiras assentes em tábuas de madeira.
“Ganhava 16 escudos [8 cêntimos] por dia e trabalhei lá durante um Verão. Mas depois voltei para as Caldas e fui aprender a ser padeiro na Borges & Matias, uma padaria na rua Heróis da Grande Guerra, ali ao lado do Montepio”, conta hoje Joaquim Coito, viajando 60 anos no tempo para reencontrar as suas memórias.
Feita a aprendizagem, o jovem ruma para Lisboa onde trabalha numa padaria, na Portela da Ajuda. Tinhas algumas ideias sobre a sua vida. Sabia que não voltaria a viver no Peso e queria conhecer mundo. Aliás, ainda hoje, aos 75 anos, diz que adora viajar. Por isso, com 17 anos feitos, faz um exame em Setúbal para obter a carta de ajudante de maquinista e embarca num navio de pesca, o Cabo Branco, que lançava redes na costa da Mauritânia.
Trinta dias no mar e dois ou três em terra, em Lisboa, para descarregar o pescado. Nalgumas vezes, Joaquim metia-se num carro de praça (táxi) com outros rapazes da região, que também andavam embarcados, e vinha ver a família ao Peso. Noutras, preferia ficar por Lisboa e desfrutar do que a cidade tinha para oferecer a um jovem solteiro à beira dos 20 anos.

A TROPA NA GUINÉ

Durante uns festejos carnavalescos na Alemanha, integrado numa comitiva de portugueses

 

A tropa e a ida para a guerra colonial era coisa esperada e considerada quase “normal” naquela época. Em 1965, com 21 anos, o mancebo Joaquim Coito assenta praça no quartel da Figueira da Foz, onde faz a recruta e tira a especialidade de condutor. Durante 11 meses o Exército dá-lhe guia de marcha para o Porto, Mafra, Vila Nova de Gaia, Santa Margarida e Tomar, até ser embarcado no navio Niassa rumo à Guiné onde ainda o esperavam mais 22 meses de tropa.
Durante algum tempo o soldado Joaquim serve a Pátria como condutor na capital, Bissau. Mas depois é enviado para um destacamento no mato, em Sedengal, junto à fronteira com o Senegal. Aí regressa à sua antiga profissão de padeiro e é ele quem coze o pão para a soldadesca.
Em Maio de 1968 o jovem do Peso passa à “peluda” (expressão que significa regressar à vida civil). Nessa altura Paris era palco de manifestações de estudantes e operários que reivindicavam maiores liberdades e mudanças políticas. Mas no Portugal salazarista e salazarento de então essas notícias não beliscam o regime. Joaquim Coito é fruto da época. Tem 24 anos e quer arrumar a sua vida. As expectativas de emprego e os salários são baixos e é novamente no mar que o jovem encontra a resposta para as suas aspirações – ganhar dinheiro e abrir um dia um restaurante.

OUTRA VEZ NO MAR

Em Agosto desse mesmo ano, apanha um comboio em Santa Apolónia e dois dias depois está em Roterdão, na Holanda. Embarca num navio da United Fruit Company, uma empresa norte-americana de produção e comércio de frutas tropicais, com sede em Nova Orleães, e que tem um historial vergonhoso de repressão e conspiração em países da América Central. Mas Joaquim Coito estava longe dessas realidades e até ocupava um lugar privilegiado a bordo: era o responsável do bar num navio que transportava carga e passageiros e que sulcava todos os oceanos.
O miúdo que nascera na freguesia de Santa Catarina viajava agora pela costa americana, atracava na Europa, rumava ao Japão. Mas nada era fruto do acaso. Joaquim Coito atingira posição no navio porque falava inglês. E aqui é preciso recuar aos tempos em que estava na Guiné e se correspondia na língua inglesa com uma madrinha de guerra de Guimarães. Mais tarde compra um curso de inglês que incluía discos em vinil que ele ouvia, repetidamente, no gira-discos. O seu objectivo era ir um dia para o estrangeiro. E ter aprendido inglês fez a diferença.
“A vida de marinheiro era uma vida boa porque, primeiro, eu era solteiro, depois porque ganhava muitas gorjetas. E eu não era de estragar dinheiro. Queria conhecer sítios e gostava de viajar”. Quando iam a terra, enquanto os outros frequentavam as tascas portuárias, Joaquim Coito procurava os restaurantes mais caros e instalava-se “à grande e à francesa” com o objectivo de ver como funcionava o serviço. É ele que o diz, meio século depois: “eu como tinha o desejo de me especializar na hotelaria, ia aos melhores restaurantes, mas não era por guloseima… era mesmo para saber como é que as casas trabalhavam”.
Nos quatro anos em que andou embarcado, entre uma viagem e outra, o caldense vem à terra. Em 1970 casa com Maria Beatriz Chita Coito (de Salir de Matos). O primeiro filho, Sérgio – que hoje é o seu sucessor na Lareira – nasce um ano depois. A vida de marinheiro esgota-se em 1972. Joaquim tem 28 anos e quer assentar os pés em terra. Mas – mais uma vez – está fora de questão regressar às origens. Consegue um trabalho na Lemförder Metallwaren, uma empresa com 1400 trabalhadores, em Osnabrük, uma cidade industrial no norte da Alemanha.
Graças aos seus conhecimentos de inglês, trabalha como tradutor junto do departamento de recursos humanos e trata da papelada dos operários.
“Ao fim de um mês vim a Portugal com um director recrutar 300 trabalhadores. Aproveitei e trouxe a minha mulher comigo para a Alemanha. A minha filha, Susana, já nasceu em Osnabrük, em 1976”, conta.
Incapaz de estar quieto, Joaquim Coito colabora numa agência de viagens vocacionada para o mercado português. Trata do aluguer de autocarros e das viagens de avião. E funda uma associação de portugueses em Osnabrük.

O PRIMEIRO RESTAURANTE

Em 1975 sai da Lemförder Metallwaren e estabelece-se, finalmente, por conta própria. Abre o restaurante Tamar, que se revela desde logo um sucesso. “Mas um ano depois convenceram-me a abrir outro restaurante com um nível mais alto, um restaurante de primeira”. E é assim que inaugura o Alderman, destinado a um público mais selecto.
Joaquim esforça-se. “Todas as semanas eu vinha de Osnabrük a Paris abastecer-me de peixe, legumes e carnes, produtos que não havia na Alemanha com a mesma qualidade. Eram 700 quilómetros para cada lado”. Em pouco tempo o segundo restaurante passa a ser uma referência em termos de qualidade.
Aos 32 anos o caldense emprega 19 pessoas nos dois restaurantes e o negócio vai de vento em popa: “quando o deixei [o Alderman] fazia 5000 a 7000 marcos [2500 a 3500 euros] por dia”.
Trabalhar na hotelaria pode ser tanto ou mais cansativo que ser operário numa fábrica. E em 1982, antes de entrar nos quarenta, Joaquim Coito resolve regressar a Portugal. “Feitas as contas só vivi dez anos na Alemanha, mas parece que foi uma vida”, conta.
Nas Caldas da Rainha abre inicialmente uma loja gourmet – o Copacabana, que ficava na Praceta António Montez. Mas em 1985 cumpre o seu sonho de construir de raiz “um bom restaurante, inspirado no Alderman” e abre A Lareira. O resto é uma história de sucesso que dura até hoje. Sérgio Coito sucedeu ao pai na gestão do restaurante, mas Joaquim vai-se mantendo activo e passa lá grande parte do seu tempo.
O empresário vive hoje uma situação de semi-reforma, que lhe permite fazer o que mais gosta – viajar. “Estive há pouco tempo na América, no Uruguai, na Argentina… Mas olhe, nunca mais voltei a Osnabrük. Os meus amigos alemães é que têm vindo visitar-me”.
Olhando para trás, Joaquim Coito recorda que entrou na Alemanha com um passaporte que só lhe permitia ser trabalhador, impedindo-o de abrir negócios. Conta que teve de tratar de muita papelada para poder ter os mesmos direitos que os alemães. Sobre estes, diz que “não são um povo frio, mas sim disciplinado”. E aplaude a existência da União Europeia em que as pessoas podem viajar e trabalhar livremente em qualquer dos 28 países. “No meu tempo não era assim. Agora é tudo mais fácil e ainda bem”.

Joaquim durante umas férias em Portugal e no seu restaurante Alderman em Osnabrük.