ontem & hoje

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Espólio PH – Património Histórico

Estas imagens são o mesmo espaço de lugares que distam um do outro, numa distância que vai da capacidade de guardar informação da ultrapassada disquette à atual e, talvez em breve, desatualizada pen, que nos permite ter o mundo na palma da mão e recordar Irene Lisboa, com uma mão cheia de nada, outra de coisa nenhuma, como se a Rua de Camões fosse um distante paradigma da cidade das Caldas. O tempo que fez deste espaço lugares diferentes terá sido mais lento do que o percorrido entre a capacidade de armazenagem da pen e a da disquette. Foi um tempo que deixou memórias que nem a pen nem a velha disquette comportam. É a memória que passa pelas gentes e se concentra no ADN cultural que transmitimos em gestos e palavras para os que hão de viver esta rua com outros olhares.
A Rua de Camões que conheci há 30 anos, quando cheguei às Caldas, não era a preto e branco como a imagem da esquerda, nem esborratada de cores metálicas, como a da direita. Era um outro lugar que recordo de memória, que começava na esquina do Restaurante Tijuca, onde se ia, num certo dia da semana, comprar requeijão acabado de chegar de Seia e almoçar jaquinzinhos com arroz de tomate bem malandro. Terminava numa loja de loiça das Caldas, baixinha, tipo casinha de bairro social.

Joaquim António Silva (2012)

À Pastelaria Machado ia aos russos. A Marina ainda não sobressaia ao balcão, com a sua cabeleira exuberante, como hoje, mas os Senhores Machados davam muita classe à Casa. Ele, sempre vestido como se fosse para a ópera. Recordo-o, de fato e gravata, mas o que mais me chamava a atenção era o seu porte. Altivo. Atento. Atencioso e silencioso. Ela, a Senhora Peregrina (nome que homenageia a padroeira de Pontevedra), de estatura inferior, geria tudo num linguajar entre o português e o sotaque galego, deslocando-se, atenta, de um lado para o outro do balcão.
Havia uma oficina de bicicletas, a cheirar a óleo e a escape de motas, onde uma catrefada de miúdos brincava e se empoleirava nas duas rodas, em viagens imaginárias. Havia umas casas de pasto, uma delas, pelo menos, intrigante. À tarde, os homens chegavam e sentavam-se numa pequena mesa, mesmo em frente à porta, o que lhes permitia observar quem passava e, com um copo de três à frente, conversavam com a estalajadeira de ar campesino, não tanto como o da mulher da foto da esquerda. Mas usava avental e talvez não me engane se disser que também usava lenço. A mim, era a montra que me chamava a atenção. Forrada com um plástico acastanhado e decorada com um papel, ora de jornal, ora de embrulho, com loiça erótica, meio escondida, uma gaiola com um pássaro e canecas mal-amanhadas. Atraía-me a desordem quase indesculpável, mas tolerada. Havia outras lojas de imensas variedades de animais e legumes em cerâmica, muito kitschs e de qualidade grosseira mas que me atraíam. Recordo algumas canecas verdes que diziam “Recordação das Caldas” e enfeitadas com bugalhos pintados. Recordo, ainda, pratos decorativos e decorados com muita fruta pintada de cores garridas. Havia uma olaria que entrava pelas profundezas da Rua da Amargura e ia bater numa outra estreitinha, por trás do atual GAT que, na altura, suponho que ainda era só uma casa de inspiração arabista. Em frente ficava a Casa da Cultura, mas que, para mim, se situava mais no Largo do Hospital Termal, do que nesta rua. Daí, tenho um repositório de recordações que não cabem nem na foto da direita, nem na da esquerda. Portanto, volto à Rua de Camões, através das intermináveis conversas que tinha com o, há muito falecido, Sr. Teles, chefe das oficinas do Hospital. De olhos cor de água, falava pausadamente: Isto não era uma rua, nem uma estrada, era uma corrente de água, a céu aberto, que ia dar às hortas, que ficavam por ali perto da Travessa da Água Quente. Aliás chama-se assim porque esta água que escorria do hospital era quente e escoava até lá. Era assim a Rua de Camões, muito antes destas fotos. A da esquerda, o Sr. Teles nunca a conheceu e eu também preferia nunca a ter conhecido, assim. Já não há espaço nem para quem vai à praça (não à fonte, como a mulher da foto), nem para quem procura o descanso, o convívio e o contacto com os plátanos, com o lago ou com o coreto do parque. Aliás, a rua deu lugar a um parque de estacionamento onde os parquímetros, avariados e inutilizados, foram substituídos por arrumadores. A rua transformou-se porque a rua é cidade e a cidade é espaço de vida. Por isso surgiram anúncios luminosos e coloridos. Por isso abriram mais cafés, mais restaurantes e lojas. Mas não era preciso estreitar tanto a rua para sacudir as pessoas e acolher veículos. Não era preciso deixar ao abandono os passeios, agora falhos de empedrado. Não era preciso dar lugar a estes homens e mulheres que fingem prestarem-nos um favor com o “destrocepr’aki e o  destrocepr’ali”, para nos irem ao bolso.
Em oposição a esta desordem que a foto da direita documenta, recordo a dignidade de uma moradora que, aquando do calcetamento do passeio, se indignou por não ver nada escrito no chão, como era normal fazer com o negro e o claro do basalto ou  do calcário.
Resolveu, então, ser ela própria a fazer um desenho de Camões – um protótipo. Uma figura de olho vendado, ladeada por o que ela queria que fosse um livro aberto e outro fechado. Quando passar em frente aos números 59, 59A e B, repare e pense que, afinal, a cidade também pode mexer quando os seus habitantes se mexem.

Teresa Perdigão