Enviuvei há seis meses. O meu Zé, companheiro de uma vida, parte dela passada em França, partiu. Agora aqui estou sozinha, rodeada de fotografias e recordações, mas também de uma vizinhança que me estima. E apesar dos meus 86 anos, ainda vou todos os anos passar uns meses ao país onde vivi mais de 20 anos. É lá que eu tenho os meus dois filhos, os meus quatro netos e seis bisnetos.

Ainda me lembro daquele dia, 17 de Outubro de 1970 quando o meu marido, José Ferreira Eustáquio, mais o José Joaquim Simão e a Maria Batalha foram a salto para a França. Foi o passador que os veio cá buscar ao Cintrão (Bombarral). Fiquei a chorar aqui em casa, com os meus filhos pequenos. A vida aqui não tinha futuro. O meu Zé amanhava umas terras, como quase todos aqui na aldeia. Mas não passávamos disto e queríamos dinheiro para construir uma casinha, para vivermos melhor. Já tinha a minha irmã e o meu cunhado em França e disseram-nos que o melhor era irmos também para lá.
O passador levou-os num carro até à fronteira de Chaves. Depois atravessaram um rio e foram de comboio até França. Quando o meu marido lá chegou, telefonou para um rapaz cá da terra e vieram dar-me o recado que ele estava bem, que estava em Rubelles (Melun) com os cunhados.
Ele começou logo a trabalhar, na limpeza de uma floresta, mas depois foi para a construção e a seguir para uma fábrica de cerveja. Naquele tempo havia sempre trabalho.
O próximo passo era eu ir ter com ele, mas no distrito de Leiria não nos davam passaporte de turista. Como ouvi dizer que no Governo Civil de Lisboa era mais fácil conseguir o passaporte, falei com uma pessoa do Cantarola, que já fica no concelho da Lourinhã e pertence ao distrito de Lisboa, e ela passou-me um recibo falso de arrendamento para eu provar que vivia lá. E foi assim que consegui ir legalmente para França. Eu e o meu José António, de 7 anos, e a Ana Isabel, de 14 anos.
Tinha o coração e a alma em Portugal
Fomos de camioneta. Só mudamos na fronteira e lá cheguei a Rubelles. Mas eu chorei tanto! Chorava todos os dias. A França não me dizia nada. Aquilo até era bonito, mas eu não achava graça a nada. Tinha o coração e a alma em Portugal. Chorava com saudades da minha terra, da minha casa, dos meus pais. E quando eu encontrava na rua alguém que fosse aqui do Cintrão ou do Bombarral ficava logo a chorar.
Mas mal sabia eu que 22 anos depois iria chorar tanto ou ainda mais quando nos viemos embora para Portugal.
TRABALHAR PARA A MADAME
A minha irmã e o meu cunhando acolheram-nos em Rubelles, mas depois alugamos uma casa na Rue du Presbytére, em Melun, onde vivemos todo o tempo que estivemos em França. Eu empreguei-me numa fábrica de confecções, onde passava a roupa a ferro. Estive lá dois anos, mas aquilo foi à falência e ainda me ficaram a dever três meses de ordenado. A mim e à minha filha, que também lá trabalhava.
Estive na chômage (desemprego), mas eu queria era trabalhar e andava sempre à procura. Até que li no jornal um anúncio de uma Madame Juvert a pedir pessoal. Fui lá e fiquei espantada porque a Madame atendeu-me de chinelos nos pés e avental ao pescoço como se fosse uma empregada. Mas era a dona de uma casa de confecções que mais tarde se especializou em vestidos de noiva.
Eu e a minha filha ficamos lá a trabalhar. Ganhávamos a 1,80 francos ( hoje seria 0,15 cêntimos de euro) à hora. Entrava às 9h00, saía às 13h00, entrava às 14h00 e saía às 19h00. Na hora de almoço eu tinha 20 minutos para vir a pé a casa, 20 minutos para almoçar e 20 minutos para regressar ao trabalho.
A Madame era uma pessoa que se dava muito ao respeito. Mas quando fazia anos e no Natal era muito simpática e fazia sempre uma festa. Ainda me lembro que uma vez, na Volta à França, que passou lá por Melun, vinha o Joaquim Agostinho e fomos todas as empregadas à janela para ver passar os ciclistas. E a Madame Juvert gritava “allons-y portugais!”.
O MÊS DE AGOSTO
O meu marido trabalhava na construção. Eu e a minha filha nas confecções. O meu filho fez o secundário e tornou-se especialista em torneiro mecânico. A vida em França era uma vida de trabalho, sempre a pensar nas férias, no mês de Agosto e na visita a Portugal.
Em 22 anos nunca falhei um mês de Agosto. A festa do Cintrão. As ruas da terra cheias de carros de matrícula francesa porque nós não éramos os únicos em França. Eu acho que quase metade da terra emigrou.
Ah!, mas eu chorava tanto, tanto, quando me vinha embora… As viagens eram longas. Cheguei a ir de comboio, de camioneta, até que o meu filho comprou um carro. Mas chegamos a vir cinco dentro do carro, com as malas no tejadilho. Nem dormíamos. Parávamos um bocadinho em Espanha e era sempre andar, mesmo sem auto-estradas em Portugal. A gente queria era chegar. O Agosto era o melhor mês do ano.
Em França só fui uma vez ao cinema. Mas íamos aos bailes dos portugueses, que era uma maneira de a gente se divertir e estarmos uns com os outros. Nalguns fins-de-semana ia visitar a minha cunhada Rosa a Juvisy. Mas a Paris, que só ficava a 54 quilómetros de Melun, só lá fui duas vezes. Uma para tratar de documentos e outra quando o meu filho comprou o carro e fomos lá passear. Dez anos depois de ter ido para França, vi pela primeira vez a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo.
Aos poucos habituei-me à França. E por isso foi com pena que me vim embora em 1992. Decidimos vir para Portugal porque o meu marido deixou de poder trabalhar por motivos de saúde. Os meus filhos ficaram. A Ana Isabel casou com um rapaz de Melgaço e o meu Zé António casou com uma francesa. Agora a minha descendência é toda francesa: os meus netos Julian, Letícia, David e Stefan e os meus bisnetos Agustin, Maya, Mateu, Nolane, Sacho e Melini. Os netos ainda entendem o português, mas os bisnetos… O certo é que todos gostam muito de vir a Portugal, da festa cá na terra, da praia da Consolação, do Sol, da comida, do ambiente que há por cá.
O Natal em França
E eu, pela minha parte, vou a França todos os anos entre Novembro e Fevereiro. Passo lá o Natal com os meus e sempre dou uma ajuda aos filhos e aos netos. Quando regresso só apanho umas semanas de Inverno, depois vem a Primavera e depois começo logo a pensar no mês de Agosto quando eles vêm de férias.
Durante aqueles anos todos em França nunca aprendi a falar o francês correctamente, mas “desemerdo-me bem”. É assim que a gente diz: “desemerdar-se”. Quer dizer desenrascar-se na linguagem de emigrante. Afinal, havia sempre portugueses à nossa volta e nós convivíamos muito com os nossos.
Este vai ser o primeiro Natal sem o meu Zé. Fomos casados durante 70 anos. Mas tenho, felizmente, os meus filhos, netos e bisnetos em França. Vou para Blois, onde vive o meu filho, à beira do Loire. É um sítio bonito, mesmo no Inverno, por causa do rio e dos castelos. E, enfim… acabo sempre por chorar quando me venho embora. É uma vida entre a França e Portugal.