Quando a interculturalidade mostra que todos cabem num mesmo lugar

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Diariamente continuam a chegar à Europa migrantes, muitos deles refugiados de países em guerra. A sua inclusão nem sempre é fácil, muito resultado da barreira cultural e linguística, mas por vezes também de radicalizações. Para combater estes problemas e mostrar que a Europa sabe receber, jovens voluntários, organizações não governamentais, instituições públicas e cidadãos dinamizam acções de apoio à integração dos migrantes e também das comunidades menos favorecidas.
Gazeta das Caldas mostra-lhe alguns exemplos de inclusão praticados na região e fora dela, como é o caso de um projecto em Salónica (Grécia) em que esta se faz através de festivais multiculturais.

Os jovens Isabel Silva e Nicolau Osório são voluntários da PAR (Plataforma de Ajuda aos Refugiados) e estiveram no campo de Lesbos (Grécia) em 2017 e 2018 para cuidar da espera dos migrantes que chegam à Europa e que ali permanecem até serem enviados para outro país. Uma das suas tarefas era a realização de actividades com migrantes para os ajudar a suportar a sua permanência nos campos de refugiados.
Isabel Silva contou que Lesbos é uma ilha grega muito próxima da fronteira com a Turquia e um dos principais locais de chegada de migrantes pois é o local onde a travessia por mar é mais curta. Na Escola Secundária Josefa de Óbidos, onde partilhou a sua experiência, a jovem explicou que as pessoas pagam autênticas fortunas pelas travessias sem um mínimo de condições de segurança.
Um dos campos onde esteve, tal como Nicolau Osório, foi o de Moria, que é considerado por muitos o inferno na terra. “Era um antigo campo de detenção e tem capacidade para 3000 pessoas, mas chegou a ter perto de 10 mil e sem condições nenhumas”, recordou o voluntário, dando conta que muitos dos que lá estavam eram menores desacompanhados.
Em Atenas foi uma missão diferente. Trabalharam em locais onde estavam refugiados e tentavam também humanizar a espera. Através de actividades, criavam ambientes de descontracção e partilha. No fundo, o seu trabalho era tentar dar esperança, acolhimento e ser a “representação de uma Europa na qual acreditamos, que é a que quer integrar estas pessoas”, resumiu Nicolau Osório.
Isabel Silva trabalhou num abrigo dos jesuítas para apoio ao refugiados. Ali estavam voluntários portugueses, crianças paquistanesas e sírias e famílias de várias nacionalidades. Embora as culturas fossem diferentes, com boa vontade conseguiam viver em conjunto.
A jovem trabalhava sobretudo com crianças para as ajudar a ter uma infância não totalmente infeliz (nos últimos meses estas crianças tinham vivido experiências traumáticas). “Apesar de toda a história dramática, de fuga e de perda, há quem queira que construam boas memórias para poder lembrar no futuro”, disse a voluntária sobre a sua missão.
Regressados a Portugal estes dois jovens quiseram continuar a ajudar e estão a dinamizar um projecto de acolhimento baseado numa rede de famílias de proximidade. Até Outubro, Portugal irá acolher 1010 pessoas e a ideia dos jovens é dar a estas pessoas “amigos” que tenham tempo para ir à casa onde ficam alojados, falar-lhes e criar laços. Querem também criar alguns eventos com a comunidade local e iniciativas de sensibilização sobre esta temática, sobretudo nas escolas.
“Acreditamos que é possível vivermos em conjunto apesar das diferenças e que, mesmo essas, são motivo para nos aproximar”, concluiu Isabel Silva.

A história de Daud

O jovem iraquiano Daud Al Anazy é um exemplo dessa integração. Quem o vê sentado juntamente com outros jovens, não imagina as dificuldades por que passou para conseguir sobreviver desde que a sua terra, Mossul, foi ocupada pelo Daesh, até chegar à Misericórdia de Alfeizerão, onde foi alojado. Foi preciso um ano, milhares de quilómetros, muitas fugas, pagamentos para travessias e, sobretudo, muita coragem.
A sua história, já contada em livro, também deu um filme, que venceu o Festival Refugees IN, um projecto europeu que visa contribuir para a inclusão através do cinema.
Na escola de Óbidos, onde partilhou o seu testemunho, Daud contou que tinha uma boa vida na sua terra, onde era proprietário de um café, mas que “tudo se desmoronou em cinco dias”, quando os extremistas islâmicos tomaram Mossul e tornaram-na capital do seu autoproclamado Califado. De um momento para o outro, deixaram de ter electricidade, água, acesso às comunicações, ficando sequestradas na sua própria terra. O jovem iraquiano chegou a ser preso e chicoteado, até que o pai, que já tinha perdido dois filhos mortos pelo Daesh, lhe pediu que se fosse embora para se salvar.
Aos 23 anos Daud vendeu o café e o carro e saiu de casa rumo à Síria, dentro de um camião cisterna usado para transportar petróleo, mas que na altura ia cheio de crianças e adultos, numa viagem que durou nove horas. Da Síria caminhou dois dias até à fronteira com a Turquia. Depois de 10 dias naquele país, pagou a travessia num barco que o levaria até à ilha de Lesbos, na Grécia. Mas a embarcação de oito metros e dois andares, apinhada com cerca de 300 refugiados, afundar-se-ia no mar Egeu ao fim de meia hora. Daud passou quatro horas no mar, até ser salvo. Mas conseguiu salvar também dois meninos, de dois e quatro anos, que estavam ao seu lado e que actualmente vivem na Alemanha.
Helena Franco Lopes, que o acompanha desde que chegou a Portugal, disse tratar-se de uma “história exemplar, na medida em que era um jovem que teve a oportunidade de fazer as escolhas erradas ou certas, e escolheu sempre as certas”. A empresária e professora de Português para Estrangeiros recordou que a primeira foto que viu do jovem era a de uma “pessoa muito fragilizada, que tinha perdido todas as referências e a auto-estima”.
Por agora Daud, continua a trabalhar no Pão de Ló de Alfeizerão, mas no futuro sonha abrir um café e manter-se em Portugal. Quer também voltar a Mossul para ver a família, sobretudo os 73 sobrinhos.
Sandra Geada, do Centro de Informação Europe Direct Oeste e Lezíria do Tejo, destacou que, quando se fala de refugiados, fala-se em “seres humanos que tinham uma vida como nós e que, por questões de guerra ou perseguição, são obrigados a fugir”. A responsável considera que é importante “humanizar” esta problemática e perceber o que cada um pode fazer.

Festivais promovem integração de imigrantes

Salónica, a segunda cidade da Grécia, é um exemplo de proactividade a integração de migrantes
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A integração de migrantes e refugiados nos países europeus também pode ser feita através de festivais multiculturais, com a partilha das respectivas culturas. Estes eventos, que também são vistos como uma “ferramenta para a Paz”, estiveram em análise em mais um encontro do projecto SLYMS, que envolve universidades e organizações da Grécia, Espanha e Portugal.
O grupo de participantes, do qual Gazeta das Caldas fez parte (a convite da CAI – Conversas Associação Internacional), esteve reunido em Março na multicultural cidade de Salónica (a segunda maior cidade da Grécia) para conhecer como preparam o Festival de Multilinguismo, mas também do seu congénere português, o Festival TODOS, que decorre anualmente em Lisboa.
O Festival de Multilinguismo que há oito anos se realiza naquela cidade, sempre no mês de Maio, pretende destacar o interculturalismo e o multilinguismo e demonstrar o “potencial da intersecção de culturas”, explicou a sua fundadora, Argyro Moutzidou.
O evento decorre no átrio da autarquia, um espaço aberto onde são colocadas diversas tendas e palcos, que permitem a cada uma das diversas comunidades mostrar as suas raízes e diversidade cultural, tanto ao nível das artes plásticas, como da música e da própria língua.
O festival, que é organizado pelo próprio município, envolve voluntários que se organizam em grupos para, durante meses, preparar os eventos, que passam também por um café multilíngue, ciclos temáticos de interesse académico e de investigação, promovendo a criação de redes.

O CASO PORTUGUÊS

Também em Portugal há um caso de sucesso neste campo: o Festival TODOS – Caminhada de Culturas, nascido em 2009 e que promove Lisboa como uma cidade intercultural pelas artes contemporâneas. A boa prática foi partilhada em Salónica pelo produtor do evento, Henrique Costa Santos, que explicou tratar-se de um festival “nómada”, que muda de bairro a cada três anos.
O evento teve início no Intendente, já passou pelo Campo Mártires da Pátria e decorre agora na freguesia de S. Vicente. Em cada um destes locais, a organização junta os espectáculos de artes performativas com uma acção social local, chamando as comunidades a integrar os projectos.
Cada edição tem contado com cerca de 20 mil participantes, sendo a maioria dos espectáculos gratuitos. A celebração do interculturalismo, a promoção de cidadãos conscientes e com sentido comunitário e a luta contra o racismo e xenofobia através das artes e da cultura são alguns dos desafios do festival, que este ano irá realizar-se entre 19 e 21 de Setembro.

Mais de 25 comunidades diferentes

Os festivais são um dos pilares do projecto europeu “SLYMS – Aprendizagem Sociocultural da Juventude nas Sociedades em Mobilidade”, que junta os três países da Europa no objectivo de criar uma rede para testar as vantagens da educação intercultural e multilingue na inclusão de migrantes e populações vulneráveis.
O projecto pretende dar respostas às questões da inclusão e fenómenos sociais da radicalização violenta e do racismo, resultantes do fluxo maciço de populações de refugiados para a Europa. Os responsáveis vêem a educação e a formação como ferramentas para essa inclusão, numa aprendizagem não formal e informal e defendem a “inclusão efectiva” dos grupos mais vulneráveis com base em modelos de aceitação da “diversidade cultural e linguística”.
Os parceiros envolvidos são a universidade de Tessália (UTH), a Associação Arsis e o município de Salónica, a Universidade de Pompeu/Fabra (Espanha) e a ONG portuguesa Conversas Associação Internacional, que durante três dias trabalharam na formação de entidades dos três países participantes.
O projecto, financiado pelo programa europeu Erasmus Mais, inclui ainda a realização de workshops nos três países participantes e duas conferências na Grécia. A primeira delas decorreu entre os dias 9 e 11 de Abril e em discussão esteve a inclusão social através da aprendizagem informal e não formal. Salónica, que foi sempre uma cidade multicultural e multilinguística, tem mais de 25 comunidades diferentes, entre judeus, paquistaneses, turcos, búlgaros, jordanos, polacos, franceses e espanhóis, a viver na cidade.
Considerada uma cidade solidária, Salónica, que tem sido governada por Yiannis Boutaris, do Partido Comunista grego, conta actualmente com 12 mil migrantes e tem políticas direccionadas a estes cidadãos ao nível da habitação, educação e resposta às suas necessidades básicas. De acordo com Lázaros Panagiotidis, do município de Salónia, os migrantes não são colocados em guetos, mas distribuídos pelos diferentes bairros da cidade, o que permite uma melhor integração.
A cidade recebe diariamente refugiados. Antes chegavam essencialmente por mar até à Grécia, mas agora vêm pela fronteira turca. O problema é que a maioria dos migrantes não quer permanecer naquele país, mas viajar para a Europa Central onde acreditam que poderão ter uma vida melhor. “Continuamos em crise e não lhes podemos dar muito mais, mas muitos dos imigrantes que partiram a para a Europa Central não estão contentes porque a vida aqui era muito melhor do que a que encontraram nos países ricos”, rematou Lázaros Panagiotidis.

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