A boer Mara Bavarian De Klerk nasceu nas Caldas em 1902 e recebeu o nome da embarcação que levou a família de regresso à sua terra, no final da guerra
Estamos no início do século XX e, no território que hoje conhecemos como África do Sul, os ingleses entram em guerra com os Boers pelas suas terras, num conflito que fez milhares de refugiados. Muitos fugiram para Moçambique, ali próximo e, da então colónia portuguesa, vieram para Portugal. Caldas recebeu cerca de três centenas de Boers, Peniche mais ainda.
Mas essa história é conhecida. Assim como a história que a Gazeta das Caldas deu a conhecer há oito anos, em maio de 2015, sobre um dos 18 bebés que durante os 15 meses em que os Boers estiveram na cidade termal nasceram naquela comunidade e que foi baptizado como Jan Harm Caldas da Rainha Wessels.
A história que contamos hoje é diferente, mas relaciona-se com essa outra, uma vez que é sobre mais um desses bebés Boers nascidos nas Caldas e, acrescente-se, sobre um dos seus nomes. Mara Johanna Bavarian De Klerk nasceu em 15 de julho de 1902 nas Caldas da Rainha.
Os seus pais tinham-se refugiado na cidade termal. Primeiro, no Hospital Termal, depois, com a abertura da época termal, nos Pavilhões do Parque D. Carlos I.
Quando chegaram às Caldas, foram recebidos efusivamente, com flores e gritos de “Viva os Boers!”.
Apesar de terem que se apresentar de manhã no quartel e de terem um recolher obrigatório às 21h30, durante o dia, os Boers podiam circular livremente pela cidade (ainda que para ir a Lisboa tivessem que pedir uma autorização).
Nas Caldas estranharam a Praça da Fruta trabalhar até ao domingo e as calçadas com desenhos, sendo que as touradas foram uma surpresa, agradável para alguns. Já os caldenses surpreenderam-se com os seus gostos pelo críquete ou pelo râguebi.
O Parque D. Carlos I estava no centro de tudo, mas, no verão, era comum alugarem burros para irem à praia na Foz do Arelho.
Os Boers nas Caldas tinham uma orquestra que atuava na Praça da Fruta e também um grupo coral que fez uma atuação nas vésperas do Natal de 1901.
A educação era, tal como a religião, uma grande preocupação nesta comunidade. Rapidamente montaram uma escola, com cerca de 70 alunos, nos pavilhões.
A vida nas Caldas era boa, dentro das contingências. Em Peniche, na Fortaleza, as dificuldades eram bem maiores.
Alguns destes refugiados trabalhavam a fazer reparações de calçado, trabalhos em madeira ou artesanato em osso. As mulheres aprenderam os segredos das rendas locais e trabalhavam nessa área.
Em julho de 1902, na despedida dos Boers das Caldas, o presidente da Câmara, Joaquim das Neves Barateiro, fez um discurso antes da partida, a meio da noite, mas com centenas de caldenses a despedirem-se, com lágrimas das duas partes.
Uma viagem histórica
Gazeta das Caldas falou, na cidade termal, com Mara Bavarian, uma sul-africana que é sobrinha-neta de Mara Bavarian De Klerk e veio conhecer a terra onde a sua tia-avó nasceu. “Os meus pais deram-me o nome dela e nós amávamo-nos, éramos muito próximas, ela faleceu quando eu tinha 15 anos e nós éramos muito amigas, herdei o anel de casamento dela”, conta, recordando os natais passados em família numa quinta para onde a tia-avó foi viver quando casou com o marido, um agricultor de Velddrif (perto de Capetown). “Ela fundou uma escola na quinta para educar os seus três filhos e as crianças daquela zona”, conta. Atualmente, apenas um dos filhos, Marius, ainda é vivo.
Mara Johanna Bavarian De Klerk faleceu em 1973. Das Caldas não terá muitas memórias, mas terá, certamente, ouvido os pais falar muito da estância termal e teve toda uma vida associada a esta terra, com um nome que lembrava uma tão singular viagem.
“Eu vim às Caldas para conhecer a cidade onde ela tinha nascido, sentir a cidade, mas não esperava encontrar os sítios onde ela esteve”, conta. A passear pelo parque ficou intrigada com os pavilhões e decidiu perguntar no Museu de Ciclismo e, aí, explicaram-lhe a ligação aos Boers e ficou estupefacta.
“Quando era pequenina perguntava sempre aos meus pais porque é que tinha este apelido engraçado e eles contavam-me a história da minha tia-avó e do navio”, recorda, entre risos. ■