Aos 15 anos Silvino Alves viu os pais partirem para França em busca de uma vida melhor e ele próprio decidiu também pôr-se a andar. O rapaz que tinha feito a 4ª classe na escola primária das Cruzes e mal saíra do concelho das Caldas, não imaginava que viria a conhecer o mundo, desde Los Angeles a Creta, desde Halifax à cidade do Cabo. Andou embarcado, mas acabou por encalhar mais de 12 anos numa cidade industrial alemã onde, à custa de muito esforço, juntou o necessário para construir um restaurante em Óbidos – o Caldeirão – do qual ainda tem saudades.
Naquele tempo as Cruzes eram uma aldeola no cimo de um barranco onde nem havia estrada alcatroada e se subia por um caminho enlameado, mais propício para carroças e tractores (que ainda eram poucos) do que para carros. Silvino Joaquim dos Santos Alves fizera a 4ª classe na escola primária local. Uma sala de aulas onde se gelava no Inverno e à qual ocorria a miudagem dos casais e aldeias em redor. Muitos iam para a escola descalços.
Aos 15 anos esperava-o uma vida a trabalhar no campo. Uma vida tão dura que até os seus pais dela fugiram, indo em busca de melhor sorte para França. Silvino nem esperou um ano. Embarcou no Alcaide, um navio da Companhia Portuguesa de Pesca, sem quaisquer outras habilitações do que a cédula marítima (obrigatória para poder embarcar). A bordo foi desterrado para o porão do navio como ajudante de motorista, um dos piores sítios para se trabalhar num barco: o cheiro a gasóleo e a óleo queimado, o enjoo, o ruído das máquinas, o ar pestilento.
A profissão aprendeu-a a bordo, à custa da experiência, nos repetitivos turnos na casa da máquinas. Um mês a navegar, dois ou três dias em terra. O Alcaide pescava ao largo da Guiné Conacri e mal tocava Lisboa para descarregar pargos, garoupas e pescadas, logo se fazia ao mar para nova pescaria.
Vida dura, sim. Mas compensadora. “Na altura um ordenado assim já bonzinho de um funcionário público eram 380 escudos [1,90 euros] e eu já ganhava 1800 escudos por mês [9 euros]. Era muito bom!”, conta Silvino Alves.
VIDA DE MARINHEIRO
A tropa, para a qual foi chamado aos 21 anos, não mudaria muito a vida do caldense. Foi para a Marinha. Em 1967 assentou praça na Escola de Marinheiros de Vila Franca de Xira, passou pelo Alfeite e ei-lo a bordo da fragata Almirante Pereira da Silva, o primeiro navio da Armada portuguesa a participar numa operação da NATO. A viagem demorou seis meses: Londres, Faial, Mindelo, cabo Horn, Los Angeles, San Francisco e regresso com passagem ainda no Canadá antes de regressar a Portugal.
Foi nessa viagem, quando estavam atracados em Cabo Verde que num belo dia de Julho de 1970 o marinheiro Alves acorda com uma estranha comunicação geral emitida pelo sistema de fonia interna para todo o navio. “Lerpou”. Só isso. Instantes depois toca o apito para a formatura e a tripulação é informada que Salazar tinha morrido e que ficariam todos de prevenção. O “lerpou” tinha sido um alegre desabafo de um 1º tenente comunicado a todo o navio.
Findos os quatro anos de tropa (dos quais três na fragata), Silvino Alves continua no mar. Embarca no pesqueiro Altaíre, um dos novos navios da Companhia Portuguesa de Pescas e passa largas temporadas na África do Sul. Depois muda de empresa e de embarcação. Viaja para Los Angeles e embarca no Goldstone, um navio de bandeira liberiana pertencente a uma empresa americana com sede no Mónaco.
“Partíamos de Los Angeles, íamos a Vancouver carregar madeira, depois ao México carregar cereais e íamos para Europa, para a Itália carregar roupas e para Creta, na Grécia, carregar passas de uva. Depois fazíamos a viagem de regresso ainda a passar por Lisboa para carregar rolhas de cortiça e no Porto para carregar vinho Mateus Rosé e seguíamos para Los Angeles. Íamos pelo canal do Panamá onde às vezes ficávamos uma semana ou mais à espera de poder atravessá-lo porque eram muitos navios e só podiam passar dois de cada vez”.
Estas viagens inter-continentais compensavam. Por esta altura o jovem ganhava 140 a 150 contos por mês (entre 700 a 750 euros), um balúrdio para os salários portugueses de então e ainda por cima pagos em dólares.
Duas razões fizeram com que Silvino Alves largasse a vida do mar. “Em 1973 parti o pé em Los Angeles e não podia andar embarcado. A companhia não me quis pagar o regresso de avião a Portugal. Tive de esperar uma semana até que um dos navios da empresa zarpasse para a Europa. Vim até Barcelona e depois de avião para Lisboa. Apareci aqui nas Cruzes, sem ter avisado, pendurado numas muletas”.
Apareceu a quem? À mulher e ao filho. E esta foi a segunda razão. Silvino Alves tinha-se casado em 1969, quando estava na tropa, com uma vizinha do Guisado, Maria Bernardina, que era irmã de um colega seu com que estava embarcado. Dionísio Alves é o primeiro rebento do casal, a que se seguiria, Melanie Alves, que nasceria já na Alemanha.
A ALEMANHA…
ilvino Alves tem agora 27 anos. Anda há dez no mar. Decide que é altura de tentar melhor sorte em terra, mas não na que lhe era madrasta. Em 1973 Portugal continua a ser um país rural, cinzento, exaurido por uma guerra colonial em três frentes de África e com grande parte da população emigrada. O futuro passaria pelo estrangeiro e em 6 de Agosto desse ano, o ex-marinheiro despede-se da mulher e do filho e apanha um avião para Frankfurt e um comboio para Osnabruque no norte da Alemanha.
O seu primeiro trabalho é numa fábrica de indústria pesada que fazia mosaicos para suportar fornos com altas temperaturas. A indústria Agrob emprega mais de 2000 funcionários, entre eles 600 portugueses. Silvino fica alojada numas casernas com centenas de outros emigrantes. Três homens num quarto e uma casa de banho ao fundo do corredor para dezenas de trabalhadores. O trabalho nas prensas como servente de material é duro e exige muito esforço físico. Mas receber 4,50 marcos alemães (2,30 euros) à hora compensa.
É Joaquim Coito, do restaurante A Lareira, à data também emigrado na Alemanha, que dá a mão ao seu conterrâneo e o leva para um fábrica da Volskwagen como soldador.
É na indústria automóvel que o antigo marinheiro vai passar os próximos sete anos. Entretanto, no Natal de 1974 vem a Portugal e leva a mulher e o filho para Osnabruque. Maria Bernardino, como muitas portugueses emigrantes, trabalha nas limpezas, mas surge-lhe a oportunidade de trabalhar na Agrob, fazer descontos e ter direitos sociais. O casal emprega-se novamente na fábrica de cerâmica e passa a viver no bairro da empresa onde, mesmo assim, já pagava 600 marcos alemães (307 euros) de renda por mês.
As férias são passadas nas Cruzes depois de uma aventura automóvel que dura mais de 25 horas. “Eu saía do turno às 14h00 e já tinha o carro preparado. Arrancávamos de Osnabruque e ainda ia jantar a Paris a casa dos meus pais, que viviam na Place de la Republique. Depois continuávamos pela noite fora… Nessa altura ainda não havia auto-estrada para Bordéus. Era quase tudo estrada nacional até às Caldas. No dia seguinte a meio da tarde estava nas Cruzes.”
A história da emigração na Alemanha acaba em 1984, altura em que o casal regressa com os filhos para Portugal.
Cinco anos antes Silvino Alves tinha comprado uma loja nas Caldas onde viria a abrir o restaurante Estrela do Mar, o qual venderia pouco tempo depois. A sua aventura hoteleira mais marcante acabaria por ser O Caldeirão, no Senhor da Pedra, em Óbidos, que ele construiu de raiz: comprou o terreno e ergueu o restaurante e casa de habitação. “Com o dinheiro que ganhei na Alemanha. Porque do tempo em que estive embarcado tinha-o gasto todo”, conta.
Estamos em 1989 e o caldense que agora reside em Óbidos tem por esta altura 43 anos. O negócio corre bem e o restaurante acaba por ser uma referência na região.
A retirada dá-se em 2012. “Foi mais pela minha mulher, que era cozinheira e estava cansada daquilo. Eu por mim gostava muito. O contacto com os clientes era o mais compensador. Ainda hoje tenho saudades do meu restaurante”.
O casal muda-se para as Cruzes onde Silvino tinha recuperado e ampliado a casa paterna. É lá que vivem hoje, cuidando do Santiago, um bebé de nove meses que é o mais novo dos três netos do casal.
… E OS ALEMÃES
Mas aos 73 anos Silvino Alves tem uma actividade diária que faz inveja aos mais novos. Levanta-se cedo e vai de carro até às Caldas onde se junta com um grupinho de amigos que todos os dias anda de bicicleta. Mas não se trata de um passeio à Foz do Arelho ou a S. Martinho. As idas podem ser até Pataias ou Marinha Grande a norte, ou a Torres Vedras a sul. Fazem entre 70 a 80 quilómetros por dia. Diz Silvino Alves que por volta das 13h00 já está em casa e pronto para almoçar. A tarde é passada por ali, entretido com a Internet, o neto e alguma bricolage.
À Alemanha já voltou duas vezes para rever locais e visitar amigos portugueses e alemães. Destes últimos diz que, sim senhor, são “frios”. Mas são também “respeitadores, trabalhadores, bem educados e muito organizados”. Não tem queixas. Diz que sempre foi bem tratado. “Até porque na altura eles precisavam de nós que íamos para lá trabalhar”. Hoje admite que possa ser diferente e que haja alemães que se sintam ameaçados por os postos de trabalhos virem a ser ocupados por estrangeiros.
Ainda hoje fala alemão, o qual continuou a praticar com clientes alemães, suíços e austríacos quando tinha o Caldeirão. A filha Melanie, advogada nas Caldas, veio demasiado nova da Alemanha para ter aprendido a língua, mas o filho Dionísio acabaria por entrar em Portugal como quadro de uma multinacional alemã por ser bom falante da língua de Goethe.