A beneditense Tânia Serrazina passou três anos numa viagem de bicicleta, que a levou por quatro continentes. A aventura, vivida entre o início de 2014 e o final de 2016, começou por ser uma ligação de bicicleta de cerca de 7000 quilómetros entre a Benedita e o jardim zoológico de Erevan, na Arménia, a favor da causa do Leopardo do Cáucaso. No final da viagem, que terminou em França depois de terem dado a volta ao mundo, na terra do companheiro Maxime Letanoux, tinham mais de 30 mil quilómetros percorridos e muitas histórias para contar.
Tudo começou em Julho de 2012, quando Tânia Serrazina terminou um ano de trabalho no Jardim Zoológico de Erevan, na Arménia, e decidiu que um dia haveria de ali voltar, mas de bicicleta.
Fazer turismo a pedalar não era novidade para a jovem beneditense, que já tinha passado umas férias a pedalar da Benedita ao Algarve neste meio de transporte, e também já tinha percorrido a ciclovia EuroVelo entre a Alemanha e a Roménia, que acompanha o rio Danúbio.
“Já tinha esse bichinho de viajar de bicicleta”, confessou Tânia Serrazina à Gazeta das Caldas.
Voltar à Arménia de bicicleta – numa viagem de cerca de 7000 quilómetros – significava também uma jornada introspectiva. “Não queria uma coisa de ir lá uma semana ou duas, queria fazer um caminho e decidi que a bicicleta era a melhor forma de o fazer”, explica.
O sonho esteve a ‘marinar’ durante cerca de um ano e meio, mas começou a ganhar forma quando o primo André Serrazina e o amigo José Penas a encorajaram. A viagem ganhou também um sentido quando se associaram a um projecto de defesa do Leopardo do Cáucaso, cujo habitat se localiza naquele país do Leste europeu.
Aos três juntaram-se Rui Valbom e Joel Ramos, colegas de trabalho de André Serrazina, e mais tarde, já na Alemanha, Natalina Bordino, namorada deste.
O primeiro grande destino da viagem foi, por isso, Munique. Aí o grupo alargado a seis elementos apanhou a EuroVelo do Danúbio e seguiu depois para a Turquia para contornar o Mar Negro a Sul.
Foi na Turquia que o grupo ganhou um sétimo e inesperado elemento, quando o francês Maxime Letanoux se lhes juntou. Encontrou o grupo beneditense acampado à beira da estrada, a proteger-se do calor, “parou e ficou a conversar connosco”, conta Tânia Serrazina.
Vivia-se a época do Ramadão e a população da aldeia onde estavam convidou-os a ficarem para a refeição da noite na mesquita. “Foi nessa noite que ele decidiu ficar connosco. Primeiro era para nos acompanhar uma semana, depois ficou um mês e acabámos por seguir mais dois anos…”, graceja Tânia Serrazina acerca da relação que acabaria por ter com o jovem francês.
Cumprido o objectivo de chegar à Arménia, o grupo beneditense continuou para cumprir o sonho de ir até aos Himalaias. Seguiram até aos Emirados Árabes Unidos, onde apanharam um avião até ao Nepal – para fugir ao conflito no Paquistão. No Nepal atingiram então a cadeia montanhosa mais alta do mundo, em Novembro de 2014.
Enquanto André Serrazina, Natalina Bordino, Joel Ramos, José Penas e Ivo Valbom regressaram, Tânia Serrazina seguiu viagem com Maxime Letanoux, que tinha saído de França para uma viagem sem destino. Os dois reencontraram-se na Índia pois tinham seguido caminhos diferentes devido aos vistos que tinham no passaporte. Voaram para a Tailândia e continuaram de bicicleta pelo Vietname, Laos, Cambodja, Malásia, Indonésia e depois Austrália.
SEIS MESES A TRABALHAR
Tânia Serrazina estava preparada para uma viagem de seis meses e já andava a pedalar há cerca de dez. Antes de partir nesta aventura tinha estado seis meses a trabalhar na Suíça para poupar algum dinheiro para a viagem à Arménia. “O plano do Maxime era viajar mais tempo, por isso ele tinha mais dinheiro, mas como o meu estava a acabar, decidimos parar na Austrália”, contou Tânia Serrazina.
Por sorte, tinha acabado de ser criado no país dos cangurus o Work and Holliday Visa para portugueses, um visto que permite trabalhar durante as férias no país. Encontraram de imediato trabalho numa vinha biológica, o que se encaixou na perfeição no perfil da viagem.
“Começámos a fazer a poda na vinha, era para ser seis semanas, mas acabaram por nos dar trabalho durante seis meses”, realça Tânia Serrazina. Como o objectivo era fazer o máximo de dinheiro possível para continuar a jornada, trabalhavam na vinha durante a semana e ao fim-de-semana no restaurante que existia na mesma propriedade.
Dormiam num parque de campismo, onde faziam limpezas quando regressavam do trabalho para não gastarem dinheiro no alojamento. “Conseguimos dinheiro para o resto da viagem”, sublinha Tânia Serrazina.
Após os seis meses na Austrália, apanharam um voo para a Patagónia, onde iniciaram a subida da América do Sul. Nesta parte do continente americano optaram por seguir pela cordilheira dos Andes, que os levou pela Argentina, Chile, Bolívia e Peru.
As paisagens deslumbrantes só tinham um senão: as subidas. “Ainda bem que não comecei pela América do Sul: a paisagem é espectacular, mas acho que se fosse logo no início não estaria psicologicamente preparada para fazer aquilo”, diz Tânia Serrazina.
O problema não é tanto subir, mas o tempo que se passa a fazê-lo. E onde a beneditense mais o sentiu foi no Peru. “No geral as subidas fazem-se muito bem, mas no Peru… é horrível, está-se sempre a subir”, enfatiza.
Aqui o factor psicológico é fundamental. Como a bicicleta é pesada, sobe-se devagar, pelo que o esforço físico não é intenso. “Contudo, podemos estar quatro horas a subir e como a descida é muito mais rápida, passado meia hora estamos a subir outra vez. E isto repete-se vezes sem conta”, explica Maxime Letanoux. “É ter paciência. O pior é quando se começa a subir e começamos a pensar que nunca mais acaba”, completa Tânia Serrazina.
O FRIO E A (FALTA DE) COMIDA
Foi também nesta cadeia montanhosa que a viagem reservou as condições climatéricas mais difíceis. Pior que o calor intenso que apanharam na Turquia e na Tailândia, foi o frio extremo da Bolívia e do Peru. “Chegámos a ir a 4.800 metros de altitude e aí apanhámos temperaturas muito baixas, 15º negativos. Para mim, que sou friorenta, foi o mais difícil”, diz Tânia Serrazina.
Houve noites em que, para terem água em estado líquido na manhã seguinte, foi preciso dormirem com as garrafas junto ao corpo. E mesmo assim, numa das noites a água congelou. “Só havia um bocadinho de água numa das garrafas e foi o que nos safou, conseguimos fervê-la, voltar a pô-la na garrafa e fazer o chá assim”, recordou.
De resto, Tânia Serrazina diz que conseguiram passar nos vários países em alturas favoráveis em termos de clima. Inclusivamente, na Indonésia e na Colômbia conseguiram escapar, ainda que por pouco, à época das monções. “Na Indonésia todas as noites havia uma trovoada gigante, parecia que o céu nos ia cair em cima”, observa.
Passados os Andes, atravessaram a Amazónia de barco, uma vez que não existem estradas, até ao norte do Peru, de onde seguiram então para a Colômbia. Neste país apanharam um voo para Madrid, de onde reataram a viagem de bicicleta até à Benedita. A viagem só terminou em França, na terra de Maxime Letanoux.
Os três anos de viagem foram feitos sem hotéis nem luxos. Quase toda a viagem foi em campismo selvagem, sem casa de banho, sem chuveiro nem água quente. Na passagem pela Ásia, durante seis meses, nem gás para cozinhar conseguiram comprar.
Mas o mais difícil de suportar foi a comida, ou a falta dela. “Tínhamos dias sem passar por qualquer povoação e não é fácil encontrar comida que não seja arroz. Houve alturas que as nossas refeições eram arroz com amendoins, o que nem sempre é fácil”, realça. E em muitos países, fora da cidade, não há pão, especialmente nas culturas orientais. “É uma coisa que faz alguma confusão. Ao pequeno-almoço o que é que se come?”, observa.
Mas Tânia Serrazina sublinha que é tudo isso que enriquece a experiência. “Desde que levantávamos o acampamento até o voltarmos a montar, tudo era uma experiência nova”, sustenta.
Em casa, os familiares também foram acompanhando a experiência, sobretudo a partir do Nepal, onde os pais de Tânia Serrazina lhe ofereceram um aparelho simples, mas tranquilizador. Era um pequeno dispositivo com apenas dois botões. O de OK enviava um e-mail para uma lista de contactos com as coordenadas GPS do local onde se encontravam e a dizer que estavam bem. “Eles ficavam a saber onde estávamos melhor que nós próprios”, exclama. O outro botão, de SOS, envia para o local uma equipa de resgate. “Depois disso os meus pais ficaram um bocadinho mais descansados”, graceja.
MUÇULMANOS SURPREENDEM
A viagem de Tânia Serrazina e Maxime Letanoux fê-los cruzarem-se com inúmeras culturas, marcadas sobretudo pelas diferentes religiões. “Há sempre muita diferença em todos os países, sobretudo quando nos afastamos mais do Ocidente”, realça. Se na América do Sul a língua e a cultura próximas tornaram a diferença menor, na Ásia a riqueza cultural e a própria comunicação é “completamente diferente da nossa. Até os gestos que fazemos enquanto falamos são diferentes”, destaca.
Mas a cultura que deixou a ciclista beneditense mais surpreendida pela positiva foi a muçulmana. “O que notámos foi que nesses países somos muito mais bem recebidos do que nos outros. Toda a gente nos oferecia chá e comida”, recorda. E um dos aspectos que mais a marcou foi que, mesmo durante o Ramadão, altura em que o grupo passou na Turquia, toda a gente lhes oferecia comida durante o dia, apesar de os locais não poderem comer. “Nós dizíamos que eles não podiam comer, ao que eles respondiam: mas vocês podem, comam!”.
Tânia Serrazina nota que é inerente ao Islão receber bem e o problema do terrorismo islâmico não está na doutrina, mas sim no extremismo, como acontece noutras religiões. “Os próprios muçulmanos não gostam do que está acontecer e são mais prejudicados com isso do que nós”, considera. Tânia Serrazina acrescenta que noutros países muçulmanos a hospitalidade repetiu-se, como no Afeganistão, na Chechénia e no Irão. Neste último país, Tânia Serrazina conta que as pessoas lhe diziam que “queriam mostrar que são diferentes daquilo que está a passar nos media”.
Outro exemplo de que as quezílias são muitas vezes alheias ao povo é o conflito na Crimeia, entre a Rússia e a Ucrânia. À passagem por este país, “diziam-me que era um problema entre governos, não entre as pessoas”, garante.


