Um chef das Caldas na Ilha do Príncipe

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Gazeta das Caldas
Francisco Rosa é chefe de cozinha e actualmente trabalha na ilha do Príncipe

Francisco Rosa nasceu em Angola, mas a sua infância e juventude foi passada entre a Foz do Arelho e as Caldas da Rainha. O chef de cozinha, de 48 anos, trabalha actualmente num resort no Príncipe e conta à Gazeta das Caldas como é viver numa ilha onde falta quase tudo mas onde a população é feliz. O cozinheiro, que já trabalhou na Europa e em Angola, conta também como foi a experiência de cozinhar em barcos de cruzeiro fluviais.
O chef diz que tem boa boca e que tanto come ostras e caviar como caracóis e pevides. Já provou morcego, não ficou fã, mas o que não dispensa é “um belo robalo assado no forno em crosta de sal, um fio de azeite virgem e uma mousse de chocolate caseira”.

 

Gazeta das Caldas
A ilha é um paraíso, apesar de faltarem vários bens essenciais

GAZETA CALDAS Quando é que descobriu que a cozinha seria a sua profissão?
FRANCISCO ROSA: Aos 18 anos conclui o serviço militar obrigatório e não tinha profissão. Antes tinha estado em Inglaterra onde trabalhei um ano como copeiro num hotel em Brighton e por isso resolvi candidatar-me ao curso de Técnico de Cozinha e Pastelaria da Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril. Foi a oportunidade de concluir o 12º ano com aproveitamento e de obter uma carteira profissional.

GC: Em quantos países já trabalhou? Em quais viveu as melhores experiências gastronómicas?
FR: Contam-se pelos dedos de uma mão: um pouco pela Europa, Angola e, actualmente, em São Tomé e Príncipe.
A minha experiência gastronómica começou muito antes de trabalhar, com a minha avó Alda e com a minha mãe que, como eu, também nasceram em Angola. Eram muito prendadas e gostavam de nos mimar com iguarias que punham na mesa. A bola de carnes, o arroz de cabidela, a muamba de galinha, os sonhos com calda e o pudim Molotoff com doce de ovos fazem parte desse legado.
Mais tarde, com a formação e os primeiros estágios em hotéis de 5 estrelas, adquiri as bases clássicas da cozinha francesa e italiana.
Nesta última década da minha vida regressei a África, onde os sabores fortes das comidas locais me trouxeram memórias gustativas da infância: o óleo de palma, o tamarindo, a jinguba, o gindungo e as frutas como a pitanga, o sape sape e as mangas fiotes fizeram os meus encantos. Estes produtos deram-me inspiração para criar novos pratos de fusão e revisitar os pratos tradicionais de Angola e São Tomé, enaltecendo-os com novas texturas e apresentação dignas das mesas dos hotéis por onde tenho passado.

“Cozinhas abaixo da linha de água”

GC: Foi agradável a experiência de trabalhar em barcos?
FR: Trabalhei em navios de cruzeiros fluviais em Portugal, no Douro, e na Europa, no Reno e no Mosel, e foram uma experiência bastante capacitativa do ponto de vista organizacional e no planeamento de operações. Eram bastante limitadas a nível de recursos humanas (falta formação e há uma rotatividade imensa), há uma carga horária bastante pesada (mínimo 14 horas/dia) e há até limitações físicas a bordo de navios com camarotes para 120 passageiros. Na maioria das vezes oferecem regime de all inclusive que integra: serviço diário de pequeno almoço, bar snacks, cocktails, demonstrações de cozinha, buffet de almoço e menu jantar com várias opções de escolha. Só que tudo isto é feito em cozinhas mínimas, mal equipadas, mal ventiladas, quase todas nas cavernas dos navios, abaixo da linha de água.
Ainda assim, é um trabalho gratificante quando subimos à sala de jantar e os passageiros nos congratulam com satisfação pela forma hospitaleira como são tratados e pelos reconfortantes repastos que lhes proporcionamos.

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Francisco Rosa com a sua equipa de trabalho

GC: Como é viver na Ilha do Príncipe?
FR: A ilha do Príncipe é um paraíso, classificada como reserva mundial da biosfera. Tem praias lindíssimas inexploradas e uma floresta húmida e verdejante onde existem centenas de espécies de árvores e plantas endémicas, assim como pássaros coloridos, alguns autóctones.
É um regalo para quem aprecia este ambiente e não estão preocupados com o facto dos acessos serem bastante sinuosos e as deslocações muito morosas e de estar muito dependente de quase todos os bens essenciais, que chegam pelo mar ou pelo ar, à excepção da água das chuvas intensas que caem regularmente durante todo o ano, algumas frutas que nascem espontaneamente na floresta e dos peixes e moluscos que os pescadores nos trazem diretamente à cozinha do hotel.
O povo é bastante acolhedor e amistoso. Apesar de serem simples e muito carenciados, são felizes e têm muito orgulho nas suas tradições.
Quando o barco não chega, não há ovos nem farinha

GC: Quais são os produtos e os pratos típicos da ilha?
FR: Os habitantes do Príncipe adaptaram-se muito bem ao isolamento e à escassez de bens e produzem alguns pratos de alto valor nutricional com aquilo que a terra dá, o óleo de palma, coco, vários tipos de bananas, matabala (inhame) e inúmeras folhas que crescem na floresta e que os locais desde muito jovens conhecem, assim como as suas propriedades curativas, sendo ao mesmo tempo alimento e remédio para muitos males.
A principal proteína aqui é o peixe e alguns moluscos, com os quais preparam vários guisados, o típico calulu, o molho no fogo (peixe fumado com cascas de coco) o funji maguita (com galinha do campo), moqueca, a azagoa (leva mais de 35 tipos de folhas) e a cachupa que veio com os assalariados cabo verdianos, aqui com os temperos da terra, pau pimenta, micoco, ossame, malagueta, gengibre e açafrão fresco. Os grelhados são acompanhados com bananas cozidas e matabala.
Adoro os petiscos de caril de crak (nome dos caranguejos dos mangues), espetadas de búzio, molho de polvo, pala pala de banana frita no óleo de coco, tudo acompanhado da cerveja nacional, a Rosema a estalar.

GC: O que é que faz mais falta na ilha?
FR: Aqui por vezes não há gasolina, logo há cortes de energia elétrica. Quando as pirogas não vão ao mar, ficamos sem peixe, se o barco de mercadorias não chega a tempo, não há ovos nem farinha, nem fruta, mas o engenho e ao mesmo tempo a despreocupação que nos transmitem, faz com que se passe bem o tempo, “leve leve” como dizem os locais.
As pessoas que queiram vir e desfrutar têm que vir com a mente preparada para as adversidades e apreciar, com olhos de ver, a vida no paraíso.

GC: Com que frequência vai a S. Tomé?
FR: A minha empresa faculta aos seus trabalhadores expatriados três ou quatro estadias de fim de semana prolongado por ano, no hotel do grupo em S. Tomé. De vez em quando, sabe bem mudar de ares.

GC: Gostaria de dar formação?
FR: Dar formação é quase como uma tarefa diária ao longo da minha carreira, sobretudo em África, onde maior parte das vezes os nossos ajudantes estão muito ávidos de conhecimento mas parcos de gastronomia. Criamos os nossos livros de receitas e implementamos procedimentos de controlo e higiene nos vários turnos.

Robalo ao sal e mousse caseira

GC: Quais são os seus pratos favoritos? E sobremesas?
FR: Eu sou boa boca, adoro comida como é óbvio e como desde ostras e caviar a caracóis e pevides. Não quero comer macaco apesar de dizerem que é um petisco. No entanto, já comi morcego, mas não fiquei fã.
Adoro um belo robalo assado no forno em crosta de sal, um fio de azeite virgem e uma mousse de chocolate caseira.

GC: Considera que a gastronomia portuguesa é conhecida pelo mundo?
FR: A nossa gastronomia começa a ser notada internacionalmente. Os estrangeiros que nos visitam ficam apaixonados pelo nosso tempero e técnica de confecção. Os restaurantes de comida portuguesa pelo mundo são muito bem sucedidos, desde a China, à França, Inglaterra, Alemanha, EUA, Polónia ou República Checa.

GC: Do que sente mais falta de Portugal?
FR: Portugal é onde vive a minha família, são muitas das minhas raízes. É a minha casa e além do mais, o país é espetacular de Trás os Montes ao Algarve. Infelizmente, nem sempre é fácil ter trabalho perto de casa, devidamente remunerado para fazer face aos encargos e, por isso, espero brevemente conseguir a minha autonomia aqui nas ilhas e, quem sabe, até trazer a família.

GC: Quais os países que gostaria de visitar e cuja gastronomia quer conhecer?
FR: São tantos que se pudesse dava a volta ao mundo. Ainda quero visitar a América de norte a sul, parte da Europa Central, um pouco da Ásia e Austrália. Ultimamente tenho tido algumas experiências com a gastronomia coreana pois acho bastante interessante a técnica de fermentação dos alimentos. No início funcionava como forma de conservação, mas comprova-se que a fermentação tem como resultado iguarias de alto valor biológico, algumas utilizadas na cozinha macrobiótica dado que são alimentos e preparações que nos desintoxicam dos venenos da alimentação moderna e que conferem bem estar geral.