Caldas poderá ser Cidade das Artes em 10 anos

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A cultura enfrenta vários desafios na próxima década mas prevê-se que o trabalho em parceria seja urgente para ultrapassar os principais obstáculos de um setor que tem sido afetado na pandemia

Caldas da Rainha já foi classificada como uma cidade criativa, mas o artista visual João Pombeiro, que por cá se radicou, acredita que “talvez daqui a 10 anos seja possível que as Caldas possa ser uma cidade das artes”. Na opinião daquele autor, esta é uma cidade e região onde não faltam criativos das mais diversas áreas, com uma de escola de artes instalada há 30 anos, faltando uma política cultural integrada não só de ação na cidade como na região.
“O único evento que talvez tenha colocado as Caldas no mapa foi o Caldas Late Night”, diz o artista, que tem videoclipes e animações premiados em Portugal e no estrangeiro.
Para João Pombeiro, falta, a nível local e regional, uma política cultural estratégica que pense na formação de públicos, que tenha em conta a criação dos meios apropriados e aposte em força na Educação relacionada com as artes. O autor considera também que a ligação efetiva da cidade à ESAD “é fulcral”, como também antevê que haja uma renovação geracional entre quem tem ocupado os lugares relacionados ao setor “nos últimos 30 anos”.
“As Caldas não está a exportar o que de melhor cá se faz” e dá alguns exemplos como Bruno Mantraste (na área da ilustração), Stereossauro, BeatBombers ou os CaveStory. Acresce a este facto, e excetuando algumas iniciativas pontuais, que à cidade “não vem o que de melhor acontece nas várias áreas culturais nacionais”. João Pombeiro dá os exemplos de Leiria e de Guimarães, que apostaram forte na Cultura e deixa expresso que gostaria que as Caldas tivesse percurso similar.
Sérgio Carolino é um dos músicos mais conceituados do país, com carreira internacional e que ensina em Portugal e no estrangeiro. Tal como João Pombeiro, o tubista considera que, dentro de uma década, o mundo digital e o presencial vão coincidir e que um não anulará o outro. Aliás, hoje aprecia-se a música ao vivo, mas também em vinil ou em streaming.
O alcobacense gostaria que daqui a uma década, na região Oeste, existisse uma maior cooperação entre as entidades culturais da região e que não faltassem projetos comuns entre bandas filarmónicas e escolas de dança ou que os agrupamentos pudesssem musicar filmes de cinema ao vivo. Pede, ainda, que seja dada atenção aos novos valores e que não faltem apoios a grupos amadores como os ranchos folclóricos ou as bandas filarmónicas.
Por seu lado, Dóris Santos, técnica superior do Museu Dr. Joaquim Manso, da Nazaré, considera que há uma propensão (que se acentuará nos próximos anos) para valorizar projetos culturais que combinam várias áreas da expressão e envolvem os membros da comunidade.
Para a museóloga “terá cada vez menos sentido “segmentar as disciplinas culturais e artísticas” dado que a cultura “resulta da multiplicidade, de cruzamentos e é transversal a várias áreas da nossa vida”.
No entender desta bombarralense, o trabalho em parceria e, em rede, “é uma tendência sem retorno, devendo ser encarada não apenas enquanto resposta urgente a financiamentos e superação de crises”, disse.
Dóris Santos antevê que o setor da cultura “afirmar-se-á cada vez mais no desenvolvimento integrado do território, alavancada por outras áreas, como o turismo, a natureza e a economia, promovendo a singularidade dos valores locais em paralelo com a internacionalização qualificada”.
Esta visão da investigadora, partilhada por outros agentes culturais da região, “só será possível com uma base sólida de programação e gestão cultural, alicerçada numa estratégia de desenvolvimento a longa duração”.
Já para o programador Carlos Mota “vão irromper no território novos modelos de organização e afirmação grupal e cultural”.
O diretor artístico do CCC acredita que a relação homem versus natureza possa recriar novos valores que associam compromissos e novas práticas, as questões ambientais tão prementes e o “aparecimento” de uma população jovem mais bem formada e informada (assim as escolas e os novos modelos de aprendizagem o reflitam) constituem fatores de esperança para o aparecimento de novos e maiores contextos culturais partilhados com novos grupos intervenientes, com mais ferramentas e maior diversidade de interesses e que podem fazer emergir novos atores sociais e culturais.
Na opinião daquele gestor cultural, com trabalho de mais de uma década à frente do CCC, as próprias cidades “têm de mudar o seu modelo gregário centralizado” e proporcionar outros processos de relacionamento transversal no território, sobretudo numa matriz eco-ambiental e tecnológica que origine uma simbiose capaz de gerar o bem estar das populações e ambiental.
“Novos desafios vão obrigar-nos a repensar as próprias noções que temos do poder, subjetividade, identidade e cidadania”, afirmou Carlos Mota, que considera que os fenómenos culturais, em democracia, são “pilares da livre construção da nossa identidade como indivíduos e consequentemente da própria sociedade”.
É inegável que a cultura gera valor económico, além do cultural e social, mas os artistas e os agentes culturais “têm que ser apoiados”, defende o programador, para quem a proliferação dos espaços de produção cultural – museus, centros de artes contemporânea, teatros, salas de espetáculos – “justificam plenamente a mediação de programas de educação artística”. Para Carlos Mota, a forma de combater a hegemonia de modelos culturais e artísticos “pode ser feita através da produção de projetos e parcerias regionais e locais”. ■

“Único evento que colocou as Caldas da Rainha no mapa foi o Caldas Late Night”
João Pombeiro

“O trabalho em rede surge como resposta a financiamentos e superação de crises”
Dóris Santos

 

João Bonifácio Serra
professor jubilado

 

 

Cultura,
do município ao território

 

 

Generalizou-se, na política autárquica, a inscrição de uma área de ação cultural. Um pelouro da cultura, associado ou não ao da educação, foi-se consagrando através da delegação de competências dos presidentes da Câmara. As autarquias assumiram a responsabilidade de edificar, financiar e gerir equipamentos de vocação cultural, como auditórios, galerias artísticas e centros culturais, bibliotecas e museus. Os municípios alocaram, na sua orgânica interna, serviços ou até departamentos ao domínio da cultura e do património histórico-cultural.
Os municípios portugueses entraram, pois, no campo da partilha com o Estado Central da política pública cultural. Com toda a probabilidade, a parte que nessa partilha cabe às autarquias ampliar-se-á, como se verifica desde a crise financeira de 2007/8.
Esta tendência para estruturar e fazer crescer a responsabilidade autárquica no campo da cultura não tem sido acompanhada por instrumentos de definição de objectivos nem por recursos de gestão. Este défice manifesta-se em práticas muito disseminadas como: a confusão entre direção política e curadoria (com os vereadores a encarregarem-se pessoalmente da programação artística e cultural), o carácter errático das escolhas autárquicas e a indiferenciação entre expressão artística e cultural e entretenimento. Outra das consequências é a festivalização da cultura, associada à compra de espectáculos a agências e a subordinação aos seus calendários e lógicas e promocionais. A inexistência de critérios previamente definidos e conhecidos das políticas culturais inviabiliza o planeamento rigoroso e transparente dos investimentos, dando ocasião a que o estímulo à criação de qualidade seja preterido pelo patrocínio de amigos e clientes locais ou do partido.
Um instrumento da maior importância com que os municípios se deviam preocupar é o Plano Estratégico para a Cultura. Na área geográfica das três comunidades inter-municipais que integram a Rede Cultura 2027 (Leiria, Oeste e Médio Tejo), só dois municípios dispõem, desde 2021, de Planos Estratégicos para a Cultura: Leiria e Torres Vedras.
A elaboração de um Plano Estratégico permite fazer um diagnóstico da situação das artes e da cultura no território, debatê-lo com os actores individuais e colectivos, produzir um ensaio de cenarização e de identificação dos futuríveis, apontar metas e metodologias de monitorização e avaliação, elencar as prioridades e as parcerias que cada município está interessado em atrair. Cria um guião da actividade e do financiamento da acção pública nas artes e na cultura, traçar horizontes temporais que vão para lá de um ciclo eleitoral, compromete na discussão e aprovação todas as forças políticas activas nos órgãos concelhios. É uma garantia para o médio e longo prazo de que a intervenção cultural tanto carece.
O lançamento do Plano Estratégico possibilita a constituição de equipas que conjuguem o conhecimento técnico com a prestação de assessoria em matéria de política cultural, como sucedeu no caso de Torres Vedras, que para o efeito contratou uma equipa a partir da ESAD/Politécnico de Leiria. E, como sucedeu no caso de Leiria, cria uma oportunidade relevante para se perceber a dinâmica cultural territorial e sublinhar a importância de um patamar de colaboração inter-municipal para a arte e a cultura.
Esta oportunidade oferece à acção cultural um ganho de escala que dificilmente pode, em democracia, surgir de outro modo. A tranversalidade da acção cultural pública, a mobilidade dos artistas, a busca de complementaridades e valorização do património comum pode ser um efeito virtuoso do planeamento estratégico da cultura.
A partilha e a troca, práticas essenciais à cultura, desafiam-nos a olhar para os nossos vizinhos e para os vizinhos dos nossos vizinhos e a inter-agir com eles. O comum que a cultura constitui não deve ser confundido com comunalismo. Esta propõe a exaltação da identidade com exclusão dos outros, dos que estão fora do nosso círculo próximo. O comum assenta num processo de reconhecimento mútuo, numa identidade relacional, onde a diversidade é aceite como um traço fundamental da humanidade. ■

Um instrumento da maior importância com que os municípios se deviam preocupar é o Plano Estratégico para a Cultura, que permite fazer um diagnóstico da situação no território