8.Gestos de desperdício

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João dos Santos
professor

“Na medicina, aliviar os sintomas sem curar a doença é tido como sensato e suficiente, se e só quando a doença é terminal ou se cura a si mesma.”
Este aviso de Gregory Bateson, proferido na universidade do Havai em 1970, no contexto de um debate sobre as crises ecológicas, sente-se hoje de forma mais amplificada, e urgente, por se ter tornado hipervisível num mundo sincronizado por plataformas digitais.
No quotidiano, há gestos semelhantes aos de aliviar sintomas que, aparentemente, em nada contribuem para curar a doença. Refiro coisas simples como separar o lixo, colaborando para uma economia de reutilização reciclagem e compostagem que sabemos não funcionar bem, e talvez nunca venha a funcionar. Insistimos neste gesto, ritualizamo-lo para que tenha significado e, assim, as especificidades contem a uma escala maior. Os gestos pequenos, mais ou menos normalizados em dimensões digitais, são relações de cada um com as coisas vivas, e outras, que formam a escala da Terra.
Os gestos pequenos contam, como as histórias marginais contam para as transformações do mundo. Principalmente, por que geram uma economia global de gestos com intenção de curar – há um orçamento global de gestos individuais, que estabelecem relações com os lugares e os seus corpos e relações entre gestos.
Sabemos que a vida na Terra é uma doença terminal, que se cura a si mesma e, por isso, insistimos em gestos contra o desperdício.

Os gestos pequenos, mais ou menos normalizados em dimensões digitais, são relações de cada um com as coisas vivas, e outras, que formam a escala da Terra

Imaginemos que paramos de nos preocupar com este gesto, tornado obsoleto por deixarmos de consumir para lá do conforto necessário – o desperdício a tender para zero, transformando o gesto em desperdício. Se calhar, como resultado e a uma escala universal, iriamos partilhar uma imagem hipervisível e normal de pilhas de recursos extraídos e transformados industrialmente em desperdício, sem qualquer relação com o lugar onde se formariam. Talvez a relação com o lugar já existisse, pois, a extração é uma relação.
Atualmente, pilhas semelhantes ocupam grandes pedaços da Terra, menos à vista de todos, sem estarem escondidas, integram uma logística sofisticada do desperdício global, parecida com o mercado do carbono. Partes dessas pilhas significam o fim dos nossos gestos numa economia de gestos, outra parte representa o desperdício gerado com discrição, a escalas quase continentais, numa economia de extração e crescimento sem fim à vista.
Como é que se faz então, enquanto o mundo não muda? Insistimos, aliviamos os sintomas enquanto a cura não chega.
A cura chegará quando a economia dos gestos contra o desperdício tiver a escala da Terra. ■

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