Como tantas outras palavras da nossa língua, também a palavra “sorte” pode assumir diferentes significados, consoante o contexto ou situação em que é usada e os processos de comunicação não-verbal a que é associada. Assim, ela tanto se pode referir à boa como à má sorte, ao acaso como ao fruto da criatividade e do trabalho árduo, a um único como à combinação de vários factores. Temos, então, o destino, o fado, o quinhão, o risco e o extraordinário, com valências neutras; a felicidade, a ventura, a fortuna, a vantagem e o sucesso, com valências positivas; e o azar, a desdita, a desgraça, o desgosto e o infortúnio, com valências negativas. Pode ainda a palavra sorte significar classe, espécie, género, laia, qualidade, maneira, modo, forma, sortimento, variedade, prémio, escolha, competência, modo de viver e, porque não, também a manobra que o toureiro executa na lide do animal.
Em 1926, Fernando Pessoa usou palavras sábias para explicar a sorte, quer a nível individual quer colectivo: “Cada homem, desde que sai da nebulosa da infância e da adolescência, é em grande parte um produto do seu conceito de si mesmo. Pode dizer-se sem exagero mais que verbal, que temos duas espécies de pais: os nossos pais, propriamente ditos, a quem devemos o ser físico e a base hereditária do nosso temperamento; e, depois, o meio em que vivemos, e o conceito que formamos de nós próprios – mãe e pai, por assim dizer, do nosso ser mental definitivo. Se um homem criar o hábito de se julgar inteligente, não obterá com isso, é certo, um grau de inteligência que não tem; mas fará mais da inteligência que tem do que se se julgar estúpido. E isto, que se dá num caso intelectual, mais marcadamente se dá num caso moral, pois a plasticidade das nossas qualidades morais é muito mais acentuada que a das faculdades da nossa mente”.
E acrescentava o nosso brilhante pensador, como se fosse hoje: “Ora, ordinariamente, o que é verdade da psicologia individual – abstraindo daqueles fenómenos que são exclusivamente individuais – é também verdade da psicologia colectiva. Uma nação que habitualmente pense mal de si mesma acabará por merecer o conceito de si que anteformou. Envenena-se mentalmente. O primeiro passo para uma regeneração, económica ou outra, de Portugal é criarmos um estado de espírito de confiança – mais, de certeza – nessa regeneração. Não se diga que ‘os factos’ provam o contrário. Os factos provam o que quer o raciocinador. Nem, propriamente, existem factos, mas apenas impressões nossas, a que damos, por conveniência, aquele nome. Mas haja ou não factos, o que é certo é que não existe ciência social – ou, pelo menos, não existe ainda. E como assim é, tanto podemos crer que nos regeneraremos, como crer o contrário. Se temos, pois, a liberdade de escolha, por que não escolher a atitude mental que nos é mais favorável, em vez daquela que nos é menos?”. Premonitório.
José Rafael Nascimento
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