Bom Sucesso do insucesso II

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Gazeta das Caldas
Maria João Melo
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Apesar de lá haver localização para todos os gostos, com ou sem vista para a lagoa, na praia ou no pinhal, todas as casas apresentavam o cheiro característico a humidade que se entranha nos materiais porosos. É o notável odor a mofo a Bom Sucesso que só a resistência dos velhos-pobres consegue negligenciar, mas que certamente transpõe o design dos muros dos resorts porque não haverá búnquer que lhe resista. É que para apreciar o luxo que reside no requinte de certas simplicidades do Bom Sucesso é necessário atenuar várias gerações de novo-riquismo.
Quando o caprichoso nevoeiro não se dissipa até ao meio dia é porque veio para ficar. Nos anos 70 aproveitávamos o interregno de sol para ir à oficina do VAu onde se colocava apenas o combustível suficiente para se chegar ao posto de gasolina mais próximo junto à escultura do José Aurélio, em Óbidos. O programa podia incluir ir abastecer a dispensa à mercearia do Sr. João de Deus e prosseguir até ao mercado de Caldas da Rainha onde não falhávamos as feiras da Cerâmica e dos Frutos. Implorávamos um gelado na esplanada da Venézia e com sorte, uma visita aos brinquedos da Capri, na Rua das Montras e na Goya encontrávamos o Kispo para nos abafar.
A vista da Lagoa de Óbidos a partir da sua margem sul era, e é, boa, mas na época a oferta de materiais para o conforto escasseava logo, só os menos friorentos arriscavam um lote junto à lagoa. Essa era a razão porque antigamente só as populações piscatórias mais pobres viverem na proximidade do fustigado litoral, esse território deplorável longe de tudo e de todos e cujo chão nada dava. Locais onde se plantavam canas e só em alguns, mais privilegiados, pinheiros que muito lentamente cresciam contorcidos e que no seu conjunto constituía uma barreira contra os ventos. Uma ravessa massa vegetal que permitia que mais adiante outras espécies florescessem, cuja madeira por isso não tem valor, mas que lá, ainda assim, também não foi poupada à trituração.
Agora, é nessa faixa que se encavalita a “propriedade populacional” por uma nesga de oceano, como se intuíssem que neste país à beira-mar plantado a praia possa, quem sabe se permitirmos, deixar de estar mesmo à mão de semear.
As férias duravam inesgotáveis 3 meses por entre mergulhos na praia da lagoa, na praia do mar e nas duas únicas piscinas comuns. Deslocávamo-nos de bicicleta, construíamos cabanas de clubes rivais, fazíamos guerras de camarinhas, pescarias no desaparecido cais da Lapinha, desafios de ténis e cantarolices durante a caminhada noturna até ao café. Em alegre magote pela rua, conversando sentados por determinados muros, em liberdade passamos de crianças a adolescentes contrastando com a vida de estudante na capital. Vivia na expetativa de ser já no próximo fim de semana que escaparíamos descurando os colegas, as amizades e outras possibilidades da cidade.
Depois aconteceu o primeiro beijo, o segundo namoro e o que resultou em casamento com um caldense que consta ter lá sido concebido durante um acampamento dunar. Até a celebração ocorreu neste concelho e alcofa com o nosso filho foi transportada ao 4º dia vida para o Bom Sucesso e foi por aí que passou os primeiros meses de existência até que por sua vez, repetiu o ciclo anterior.
Faz agora 3 anos que arrasaram, vedaram, alcatroaram e alcatifaram de verde golfe o cenário onde as nossas vidas se desenrolaram. Questiono-me se o que resta deste território será o suficiente para proporcionar uma vida apaixonada às gerações de netos de todos.
(continua)
Maria João Melo
rainhaemcalda@gmail.com

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