Cenários #Telemóvel

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João Silva
professor

Cenário 1: O pai passeia o carrinho de bebé. Na mão direita tem o telemóvel e na esquerda o carrinho de bebé e a trela do cão. No olhar o reflexo do ecrã do telemóvel.
Cenário 2: A família junta-se à mesa para jantar. A neta pede repetidamente ao seu avô que desligue o telemóvel e se junte à conversa. O avô resiste…
Cenário 3: Museu de Orsay, Paris. Uma multidão percorre as galerias e salas com obras dos pintores impressionistas mais famosos do mundo, mas apenas as veem pela lente do telemóvel.
Cenário 4: Serão em família. Cada elemento no seu espaço de evasão, a começar pelo bebé que vê uma sucessão de filmes de animação no telemóvel do seu pai. Estes cenários podem multiplicar-se e têm um denominador comum, o telemóvel. Não sou anti telemóvel e não o abomino. Tenho necessidade dele e sinto a sua falta. Aliás, o telemóvel é um elemento fundamental na construção do progresso. Mostra a história que não devemos contrariar a força transformadora da inovação.
Sinto a perda de muitas conquistas da humanidade devido ao uso abusivo desta ferramenta digital. Desde logo o diálogo em família e o poder comunicacional dos jovens. Nas nossas escolas, principalmente do 1.º ciclo, sentimos que os alunos têm muita dificuldade em se expressar. A construção de uma frase, a descrição de uma imagem, o recontar de um episódio são tarefas de uma dificuldade extrema para as nossas crianças.
Os conflitos avolumam-se, perde-se a capacidade de argumentar e de estabelecer um entendimento apenas com o recurso à palavra. A própria modelação do tom de voz sofre com a falte de prática. O tom da frase sai agressivo quando pretendia ser cordial. Não é apenas a comunicação que é afetada, o próprio entendimento do texto escrito assume-se como desafio.
Subimos no patamar etário e a ansiedade por estar longe do telemóvel avoluma-se e assume proporções impensáveis. Os intervalos das aulas são os momentos em que se pode voltar ao ecrã de forma livre e desligar de tudo o resto. Para muitos jovens os intervalos das aulas já não são aquele momento mágico em que se convive com os colegas. Talvez se conviva,porém através do telemóvel de cada um. As relações afetivas passam a ser mediadas pelo digital e o encontro presencial passa a secundário.
Os idosos criticam os jovens por este comportamento de alienação, sem quererem ver o óbvio, que também eles já estão reféns desta magia.
O impacto do telemóvel na vida de todos nós deve merecer muita atenção por parte de psicólogos, sociólogos, psiquiatras, cientistas sociais, não para impedir a sua utilização, uma vez que não acredito em sociedades proibicionistas. Mas, para percebermos o caminho para onde vamos e, fundamentalmente, se é esse o caminho que queremos seguir.
Relembro que o grande fascínio da vida está nas coisas simples, como seja um almoço em família em que nos atropelamos em conversas cruzadas de intensos decibéis sem a presença de intrusos (telemóveis). ■