Crónica do Québec (Canadá) – Pesca nas cabanas de Sainte Anne de la Pérade

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notícias das CaldasUma das actividades mais populares das gentes do Québec é a pesca. Durante o Verão, como nos gélidos meses de Inverno, inúmeros habitantes da província passam longos momentos de lazer calmamente sentados nas margens dos variadíssimos lagos ou rios que compoem a nossa paisagem, a exemplo do que faz qualquer pescador doutras latitudes, ou, no interior de pequenas cabanas aquecidas, em Sainte Anne de la Pérade.
No nosso caso pessoal, pescar nunca fez parte dos passatempos preferidos. Quando temos necessidade de nos esquivar a algum convite para tal, vimos sempre com a esfarrapada desculpa de que, numa longínqua manhã de Setembro de finais dos anos sessenta ou início da década de setenta do século passado, passámos por uma desagrável experiência da qual ainda hoje guardamos algumas sequelas.
Depois duma agradável noitada, que durara até às tantas da madrugada,  passada  na cozinha do café da Polónia saboreando umas saborosas febras de porco assadas na brasa, tudo acompanhado com cerveja fresca, eventualmente em excesso, cerca das duas ou três da madrugada o grupo de jovens adolescentes do qual fazíamos parte, e numa sofreguidão de aproveitar intensamente a vida  e cada instante  natural e típica da idade, logo ali decidiu que na manhã que se aproximava e ainda  antes do Sol nascer, partiríamos para uma das quebradas de Salir, a Maria da Serra creio, para um dia de pesca.
No nosso caso, penso que seria a primeira vez que que nos entregaríamos a tal lazer. O facto de não possuirmos qualquer apetrecho não seria problema, pois dentro do grupo outros haveria que teriam uma ou duas canas a mais. Assim, como combinado, interrompemos o habitual sono prolongado que fazia parte das rotinas de férias, lá pegámos algo contrariados na motorizada Casal e nos juntámos ao grupo de três ou quatro jovens da mesma idade, para a grande pescaria. A manhã anunciava-se prometedora, mas uma vez no local escolhido, ao pegarmos numa pequena faca que leváramos de casa com o intuito de  prepararmos minimamente os rudimentares apetrechos que um dos colegas nos emprestara, certamente com os olhos ainda meio cerrados, o inevitável aconteceu. Num movimento desajeitado, ao tentarmos cortar um bocado de isco artesanal, a lâmina de aço foi por engano encontrar o dedo indicador da mão esquerda. Só nos apercebemos da gravidade da situação ao constatarmos que metade do mesmo, pendia perigosamente na vertical, pois a faca passara exactamente entre as articulações, e só um ínfimo pedaço de pele frágil o prendia à mão.
A pescaria que não chegara a começar terminou logo ali. Para estancar o sangue, enrolámos o dedo ferido  no lenço que sempre nos acompanha, voltámos a pegar na motorizada e dirigimo-nos de imediato aos serviços de urgência do Montepio, onde após alguma espera e apesar da inexistência de qualquer vínculo ao mesmo, fomos atenciosamente atendidos pelo médico de serviço na altura, que nos voltou a ligar os tendões, numa cirurgia sem anestesia local que durou cerca de duas horas. Após alguns meses de recuperação, e com algumas asneiras pelo meio, como o facto de termos chegado a participar numas futeboladas com a mão ao peito, e o dedo protegido por uma espátula, acabámos por sofrer duma infecção provocada pela transpiração, que mais sequela não deixou,  que uma pequena rigidez na articulação do mesmo, e para a qual nem a fisioterapia teve solução. A nossa escolha do Montepio deveu-se certamente ao facto de nos termos recordado na altura, de por lá termos andado em criança com algumas pequenas mazelas sem importância de maior. O desconhecimento de que se tratava duma  instituição privada era então total. Antes ou após o tratamento, nem o Doutor Palma nem ninguém da clínica nos perguntou se éramos ou não sócios, e nunca recebemos qualquer factura. Se a vida não nos tivesse afastado da zona, faríamos hoje certamente parte dos inúmeros sócios anónimos da  associação. Assim, continuamos em dívida para com todos os profissionais que tão diligentemente nos atenderam num momento tão delicado, sem nada nos terem pedido de volta, naquela manhã quente de Setembro, depois duma pescaria que o não chegou a ser.
Chegados ao Québec ainda voltàmos a acompanhar um amigo num dia de pesca, bem instalados num pequeno barco motorizado, admirando a bela paisagem envolvente. Mas definitivamente entendemos que,  há certamente, na nossa opinião claro, formas mais interessantes de passar o tempo. Tal não impede que, por influência dos orgãos de informação locais, nos mantenhamos informados sobre uma forma particular de pesca que pensamos ser exclusiva do Québec. Na pequena povoação de Sainte Anne de la Pérade, e quando a camada de gelo que cobre os canais envolventes atinge cerca de 30 centimetros, instalam-se pequenas cabanas de madeira sobre as águas geladas. Vêm famílias inteiras que passam longas horas, no espartano conforto das provisórias residências, na expectativa de que os esfomeados, «poulamons», espécie de pequenos bacalhaus de água salgada que apenas existem na América do Norte, que sobem as águas do rio São Lourenço até esta zona, e mordam o isco, para gláudio de todos os presentes.
Estas verdadeiras aldeias sobre água, com o aproximar das temperaturas mais moderadas do mês de Março, e a diminuição da espessura de gelo desaparecem, até que se voltem a instalar na próxima estação invernal.

J.L. Reboleira Alexandre
jose.alexandre@videotron.ca

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