ELOGIO DA IMPERFEIÇÃO | Ponto de não retorno

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Gazeta das Caldas

Convidei os meus pais para passarmos uns dias de férias juntos.
A intenção era boa, mas confesso que desde o início o meu corpo me avisou, através dum estado de ligeira ansiedade e desconforto que teimava em não desaparecer, que não iriam ser dias fáceis.
O meu pai estava formalmente reformado e acabara de vender o negócio onde investira a sua vida.
Eu sabia que ele tinha feito um bom negócio em termos comerciais, mas também sabia que deixar de trabalhar e vender a empresa era entrar num mundo desconhecido. Num mundo onde se sentia meio perdido, inseguro. Afinal toda a vida vivera para o trabalho e para proporcionar um bom nível de vida à família. No fundo sei que sempre lamentou que eu não tivesse ficado a trabalhar com ele, que nunca me tivesse interessado… Nunca mo disse claramente, aliás nunca falámos muito um com o outro.

A minha mãe ficou toda contente. Irmos os três de férias… tantos anos depois… Mas também a pressenti ansiosa e tensa. Tantos anos habituada a gerir as rotinas diárias sozinha… os serões à espera do marido que tardava ou que depois se fechava no escritório a tratar de papelada… e agora? O que fazer com o tanto tempo para estarem juntos?…
Mantinha um ar jovial mas tinha amargado, a minha mãe. Para ela a vida tinha-se desenhado num espaço confinado sem grandes hipóteses de fuga. Cuidar da casa e educar a filha, cumprir, como costumava dizer, com as suas obrigações de esposa. Sempre senti que no fundo detestava a empresa do marido. Era uma espécie de outra, que lhe roubava o interesse e a atenção do homem. Foi-se organizando em rotinas de gestão doméstica, rígidas e indiscutíveis, como se vivesse num permanente concurso da dona de casa perfeita.
Senti-os ambos assustados. Sabiam que as coisas iriam ser diferentes, mas nenhum estava seguro de saber o que fazer com o tanto que agora sobrava do outro.
Confesso que não foram uns dias fáceis… A minha mãe parecia que queria pôr todas as conversas em dia e aproveitar o estar comigo de modo ávido e exclusivo. O meu pai… o meu pai parecia que se sentia sempre a mais… sempre deslocado, desconfortado, calado… como se fosse um peso, para ele e para nós.
Angustiei-me. Achei que ele iria adoecer, deprimir e que ela o sentiria como mais um fardo que a vida lhe dava e que teria que assumir e cuidar.
Já depois de termos voltado, tive que me encontrar com o meu pai por causa dumas burocracias. Convidei-o para um café. Disse-me então que não tinha papéis nenhuns para eu assinar, que o que queria mesmo era falar a sós comigo. Que me queria agradecer o ter ido de férias com eles. Que sabia que eu estava preocupada e que ele também estava. Que não sabia se ia conseguir adaptar-se bem à nova situação de vida. Que estava cansado e que tinha sido bom parar de trabalhar, mas que não estava a ser fácil. Que ele e a minha mãe, sem nunca terem querido tratar-se mal um ao outro, se calhar não se tinham tratado muito bem. Que se calhar era tarde para recuperar muitas coisas, mas que também esta era a vida que, para o bem e para o mal, tinham conseguido construir e que não souberam ou não puderam fazer diferente. Que achava que me tinham dado a possibilidade de fazer escolhas e que isso o deixava feliz. Que me ia deixar pagar o café, porque eu é que tinha convidado e já eramos todos crescidos e responsáveis.
E desta vez, foi a minha vez de pagar os cafés e ficar sem palavras.