Morreu há dias a prima Elvira do Pinhal. Com ela, uma parte de Óbidos morreu também.
Prima porque era filha de um primo longínquo da nossa avó Sofia. Como primo é um querido amigo, bisneto de uma irmã da nossa trisavó, Maria da Conceição. É deste tecido que Óbidos era feito, de uma teia cheia de cruzamentos de famílias, de amigos, histórias bonitas, histórias de amores e desamores, histórias tristes e desgraçadas, encontros e desencontros. Este tecido social dentro e fora dos muros da Vila era feito de pessoas, que lentamente foram saindo, sendo afastadas, morrendo, sem que haja renovação de gerações. Quantas pessoas vivem hoje dentro das muralhas?
A praça de Santa Maria, o largo principal da Vila, funcionou como mercado até aos anos 1960. Ali a população se abastecia, diariamente ali chegavam os agricultores das terras em volta que traziam a sua produção. Nessa década criou-se uma estrutura, bastante feia, na porta da Vila, do lado de baixo do chafariz, para servir como mercado diário, de um lado os legumes, do outro o peixe. Na minha infância, estava desse lado a eterna Graciete e do lado dos legumes várias senhoras, entre as quais sempre, com chuva, sol ou ventania, a prima Elvira do Pinhal.
Mais recentemente, essa praça transformou-se num café e o mercado passou para baixo, ao lado dos autocarros. Ali, até poder, até há muito pouco tempo, a Elvira esteve firme no seu posto, trazendo para a Vila os seus legumes e as suas frutas. Já velhinha, já com ajudas no transporte, ali esteve até ao fim. Praticamente deixou de vender aos obidenses, por falta deles, e passou a vender aos turistas.
Hoje quem quer comprar leite ou fruta vai ao Pingo Doce. Em Óbidos vila, não há uma mercearia ou uma lojinha onde nos possamos ‘aviar’.
Quando éramos miúdos, os recados eram feitos entre o Sr. Fernando Tição, a D. Rosa do Ápio, a D. Deolinda do Broa ou o Sr. João Roberto no Arrabalde, mercearias onde também se vendiam muitas outras coisas… A drogaria era do Sr. Luís da Porta da Vila, que tinha mesmo tudo, incluindo as cordas grossas que comprávamos para podermos brincar, pendurados em grutas e nas muralhas, aos cinco e aos pequenos vagabundos. Sapateiros, tínhamos de escolher entre o Sr. César ou o sapateiro do Porto. Também havia o talho dos Pedras e o do Lé. E claro, o barbeiro Lyon, pintor naïf, que tão bem captou Óbidos. Tabernas eram muitas e frequentadores das mesmas também…
Voltar a Óbidos foi sempre voltar a casa. Saudar todos, desde a Porta da Vila até ao castelo. Saber das novidades, perguntar pelos achaques da D. Marquinhas Morais e saber como estavam os canários da vizinha da frente. Eram pessoas, famílias, gente que respirava, falava, vivia.
Hoje temos lojas, uma vila feita loja desde que se chega até que se parte. Onde estão as pessoas de Óbidos? Quem dá vida à Vila? Quem a faz respirar, sentir e pulsar? Quem a faz existir e ser?
O tempo não volta para trás e ainda bem. Mas temos de nos reinventar para trazer mais pessoas a habitar Óbidos. Não para estágios ou residências pontuais. Precisamos de gente que faça de Óbidos a sua casa. Há casas do município que tinham como destino a habitação – há que reabilitá-las e enchê-las de vida. Há que reafectar outros edifícios públicos à habitação.
Não há museus, nem eventos, nem festivais que nos valham se não formos capazes de inverter este ciclo de desertificação de Óbidos, que vem de há décadas e que se vem acelerando de forma dramática.
Aqui fica uma cesta cheia, bem carregada, de saudades da Elvira.