Em Maio de 2017 convidaram-me a participar numa conversa sobre poesia e tascas. Mesa posta num largo de Coimbra, quatro poetas, cavaqueira amena moderada pelo jornalista Fernando Alves. No final do encontro, o jornalista recolheu alguns testemunhos para uma rubrica que assinava na TSF. Roubei-lhe o título para esta crónica. Desafiado a partilhar com os ouvintes um “lugar secreto”, ocorreu-me a Quebrada de São Romeu. Saberão que se trata de uma pequena praia de seixos, por detrás do Morro de Sant’Ana, em Salir do Porto. O lugar não tem nada de secreto, mas o caminho para lá chegar é agradável e sossegado, a vista que propicia especialmente inspiradora. Ali observamos como a terra barra o oceano, que entre as duas colinas penetra a baía e se acalma como fera refreada. Só depois de o testemunho ter sido gravado fiquei a saber que as ruínas no alto desse morro são de uma capela, e não de um forte ou de um farol — como eu imaginei ou alguém me disse. Redimo-me agora do lapso.
Há dias sonhei com a Quebrada de São Romeu. Foi depois de ter visto as imagens de um mar de plástico numa praia da República Dominicana. E no sonho, os seixos do meu “lugar secreto” tinham dado lugar a tampinhas de garrafas, pela baía penetrava já não um mar de águas claras mas toneladas de plásticos, toda a baía de São Martinho convertera-se num reservatório de microplásticos, alimento predilecto de uma nova espécie marítima que, por sua vez, era apanhada e ingerida por um novo tipo de homens, parecidos com seres humanos, mas com características ligeiramente diferenciadoras. Homens com membros de borracha em vez de carne, homens de borracha, semelhantes a bonecas insufláveis, com cabeças de plástico, cérebros de plástico, corações de plástico. Não é precisamente nisto que a sociedade de consumo nos está a transformar?
As notícias são alarmantes: “A ilha de plástico do Pacífico Norte tem 17 vezes o tamanho de Portugal. Quem se incomodará com este título? E com esta notícia?: “Baleia morre depois de engolir mais de 80 sacos de plástico”. Quando criou o mundo, deus mandou-nos dominar todos os animais à face da Terra. Insatisfeitos, estamos empenhados em exterminá-los. Razões para tal são facilmente diagnosticáveis: estupidez, avidez, ganância, consumismo desenfreado. As imagens que chegam da limpeza dos recintos onde ocorrem por esta altura todo o tipo de festas e festivais são elucidativas: toneladas de copos, tendas ao abandono, sacos-cama perdidos, cadeiras desfeitas, todo o tipo da tralha que alimenta a besta humana. As sociedades consumistas em que vivemos procuram aliviar-nos a consciência promovendo hábitos amigos do ambiente, pensos rápidos em feridas profundas.
Façamos um exercício cínico proposto pelo escritor japonês Osamu Dazai. Olhemos para o nosso prato no final de uma refeição. Imaginemos que fomos muito poupados e deixámos apenas no prato um bago de arroz. Suponhamos agora que o mesmo aconteceu com todos os restantes habitantes do nosso país. Teremos então 10 milhões de bagos de arroz desperdiçados, puro lixo. Toda a gente percebe que se trata de muito arroz. Toda a gente perceberá também que é muito superior a quantidade de alimentos desperdiçados diariamente em todo o mundo, enquanto 815 milhões de pessoas padecem de fome crónica. Como se muda isto? É simples: sejamos exigentes connosco, primeiro, e com quem nos governa, depois. Sejamos claros: o mundo precisa de uma revolução universal se quiser continuar a ser mundo, revolução que implique punições severas a todos quantos não respeitem o que de mais precioso temos. Chama-se Natureza, lugar secreto que já tão poucos seres humanos parecem interessados em conhecer.
Henrique Fialho
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