Num do primeiros dias de outubro, tocou à campainha alguém que me procurava e não conhecia, que chegava das Caldas da Rainha.
Estávamos em 1973, a mais de 1700 quilómetros das Caldas – a situação ocorria numa das torres do Boulevard Massena, em Paris. Morava aí há pouco tempo, desde que me fora concedido o estatuto de refugiado político e conseguira arranjar trabalho. Diga-se em abono da verdade que a atribuição do estatuto de refugiado fora menos difícil do que esperado pelo facto de o jornal “Le Monde” ter noticiado a minha prisão pela Pide em abril de 1971, mencionando a condição de ex-candidato da Oposição Democrática.
Havia um ponto em comum com o recém-chegado “caldense” (como a Gazeta gosta sempre de distinguir os protagonistas das suas notícias). Cumprindo o serviço militar até ao embarque para África, deixámos ambos nessa altura o exército colonial, assumindo as então bem pesadas consequências dessa atitude. Pelo meu lado, anos antes, fora subscritor de um manifesto que criticava a política colonial da ditadura, e defendia a aplicação às colónias das recomendações das Nações Unidas, que o regime contrariaria até ao fim.
Como é que o José Luiz tinha obtido a minha morada? Tinha-lhe sido dada por um outro “caldense”, o médico Custódio Maldonado Freitas (1917-1994), opositor à guerra e à ditadura, e por essa altura candidato pela Oposição Democrática pelo círculo de Leiria (1973). Tinha-o conhecido alguns anos antes, através do amigo comum José Henriques Vareda (1927-1989), uma referência da advocacia e da oposição, e não apenas no distrito. Foi o Vareda que a tinha passado ao Custódio – e este ao recém-chegado “caldense”.
Pelo meu lado, nada sabia das movimentações em curso no interior das Forças Armadas e, ao contrário do José Luiz (que entretanto fora trabalhar para Rouen e com quem ia conversando nos fins de semana) não acreditava que estivesse para breve a queda do regime, sem a qual não poderíamos regressar… a não ser para cumprir uma longa pena de prisão.
Eis senão quando, poucos meses depois, uma grande surpresa “bate à porta”: a comunicação social francesa dá notícia dum levantamento militar contra o regime, com os revoltosos a sair dum regimento da Caldas da Rainha, rumo a Lisboa. O movimento não triunfa e é seguido de elevado número de prisões. Era absolutamente revelador da intensidade do mal estar que já se vivia nas Forças Armadas – novas surpresas eram possíveis!
E assim aconteceu. O derrube da ditadura chegaria pouco mais de um mês depois desse levantamento que associou as Caldas da Rainha ao prenúncio do 25 de Abril. Nos primeiros dias de Maio – não só o José Luiz e eu como centenas de outros exilados – já estávamos de novo no País, graças também ao contributo do “caldense” 16 de março. Obrigado aos que o fizeram. ■