O primeiro caldense

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Alberto Costa
advogado

Conheci João Bonifácio Serra (1949-2023) há quase 58 anos, em Alcobaça, onde ele passava um fim de semana em casa de um colega. Ele estava no final do secundário, que frequentava num colégio das Caldas, eu iniciava a Faculdade. Tínhamos interesses comuns, já ao longo de anos revelados em colaborações no «Diário de Lisboa-Juvenil»: a cultura e, em particular, ao tempo, a literatura.
João Serra tornar-se-ia o meu primeiro amigo caldense. Ao longo da vida, ensinou-me sempre muito sobre as Caldas e sobre toda a região – e, além de mim, claro, a muitos, muitos mais. Provínhamos ambos dum mundo rural hoje desaparecido (ele, assumido «menino de quinta»), que tão bem soube retratar num livro editado pela «Gazeta». Como aí escreveu, era um mundo de fronteiras sociais muito marcadas, em que «os donos da terra se autodenominavam senhores e designavam por servos os seus jornaleiros» – e onde, para garantir a preparação para o «exame de admissão» aos liceus, os seus pais o transferiram para o chamado ensino doméstico, contratando uma professora mais capacitada do que a regente escolar encarregada da escola da aldeia…
Mas foi em Lisboa – para onde ele foi no ano a seguir, para estudar História na Faculdade de Letras – que a amizade se desenvolveu. Aí participámos no movimento estudantil e nos seus confrontos com a ditadura, em particular em 68/69. Ao contrário do que acontecia em Direito, o governo não reconhecia legalmente o movimento associativo em Letras, onde só havia, por isso, uma «Pró-Associação». João Serra viria a ser um dos seus dirigentes e muitas vezes representou Letras na RIA («Reuniões-interassociações») – uma estrutura de coordenação do movimento estudantil que o governo da ditadura considerava ilegal, prevendo mesmo sanções para quem nela participasse. Este contributo em tempos de risco teria mais tarde continuidade em diversos momentos de participação político-institucional (em que se destacará o período à frente da Casa Civil de Jorge Sampaio) que João Serra teve a capacidade de ir inserindo numa vida sobretudo dedicada à cultura: ao ensino, à investigação, à divulgação, à concepção e concretização de grandes iniciativas culturais, a partir de diversos territórios e com larga projecção, interna e internacional.
Outros falarão de forma mais qualificada na marca profunda que deixou impressa nesses domínios e no impacto dessas iniciativas. A mim – que com ele ia contactando cada vez mais de longe em longe – impressionou-me sempre muito a forma como soube interpretar, projectar e realizar a partir de diferentes cidades e territórios, «lendo» e concretizando oportunidades, aliando o conhecimento e o rigor do historiador à criatividade e à enorme capacidade de diálogo institucional, além de pessoal. Tudo isto num mundo cada vez mais multinível, em que o local, o regional, o nacional, o europeu e o global quase sempre são chamados a interagir. Tudo isso ajuda a explicar que, em torno de João Serra, ao longo dos últimos anos, se tenha formado um amplo e inusual círculo de reconhecimento, plenamente justificado, que vai do nível autárquico (Caldas, Guimarães, Leiria, mas também Alcobaça, Alpiarça, Peniche, etc) ao nacional – e se estende a um numeroso grupo de países e também organizações internacionais (Luxemburgo, Itália, Grécia, França, Finlândia, Noruega, Tunísia, Argélia, Marrocos, Turquia, Canadá, UNESCO) .
Do mundo das Quinta das Laranjeiras e do Carvalhal Benfeito dos anos cinquenta e sessenta para o vasto mundo global dos nossos dias, encontramos em João Serra um percurso e um desempenho, em múltiplas frentes, que entre nós dificilmente encontrarão paralelo. Muito para lá do imaginável no Café Trindade, em 1965. ■

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