Joana Louro
médica
Escrevo depois de 24 horas de urgência. Acabo de chegar a casa e sinto aquele limbo habitual de exaustão imensa e absoluta incapacidade para dormir. Em 24 horas num serviço de urgência (SU) vive-se muito. Sente-se muito. Tomam-se muitas decisões importantes por unidade tempo. Decide-se depressa. Comunicam-se muitas noticias. Nem todas boas. Lidamos e gerimos muitas pessoas: profissionais, doentes, familiares… Demasiadas. São horas exigentes, extenuantes, desgastantes. As equipas estão desfalcadas. A falta de recursos é gritante. Os planos de contingência são apenas paginas escritas num documento impossíveis de cumprir na realidade. E o SU é a única resposta – clinica e social – ainda existente (veremos até quando) para um sem fim de situações que são tudo menos urgentes, mas que carecem de resposta. Na completa perversão da essência, do significado e da função de uma Urgência.
A Urgência é a porta que está sempre aberta. Sempre! 24 horas por dia. 365 dias por ano. Às vezes sabe Deus a que custo. Por isso custa mesmo muito acreditar na noticia que invadiu os noticiários deste país faz agora 2 semanas: “Hospital das Caldas recusa atender grávida que sofreu aborto espontâneo”.
Estava de férias e fora do país. Mas a repetição, divulgação, sensacionalismo e especulação deixaram-me nauseada. Hoje com conhecimento dos factos o desconforto ainda é maior. Como Goebbels dizia “Uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”. Acrescento: se for dita e repetida pelos diferentes órgãos de comunicação social, torna-se verdade absoluta. São muitas – demasiadas até – as reflexões que este tema merece. Não cabem todas neste espaço.
Mas será que alguém no seu perfeito juízo acredita que um hospital recusa receber uma doente que esteja instável ou em estado critico? Sobretudo quando a urgência é uma porta sempre aberta – sem chave, nem tranca e o acesso a sala de reanimação é livre e direto. A responsabilidade é uma palavra que nos é muito cara: mas tem de valer para todos! Para todos os profissionais envolvidos (não só de saúde) e responsáveis políticos. Mas para o jornalismo também! E sobretudo para o cidadão que consome esse jornalismo, muitas vezes sem qualquer critica. Há sempre o lado fácil e o difícil, e até isso nós podemos escolher. É demasiado fácil simplificar, julgar e destruir. O julgamento injusto, implacável e simplista é sempre o caminho mais curto. E quase nunca o correto.
Os Hospitais são organizações. E as organizações são feitas de pessoas. Que naturalmente cometem erros que devem ser sempre identificados e corrigidos como uma “high reliability organization” exige. Outra coisa é denegrir de forma injusta, gratuita e cruel o Hospital, e como tal, as pessoas. Assim só teremos cada vez menos hospitais… e pessoas… até não restarem nem hospitais, nem pessoas para assegurarem urgências… 24 horas por dia.■