V. Comércio, Tradição e Resistência

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Gazeta das Caldas
Carlos Querido
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«J’aime flâner sur les grands boulevards. Y a tant de choses, tant de choses. Tant de choses à voir», cantava Yves Montand, nos idos de sessenta, sensivelmente na mesma altura em que foi publicado o livro de Hemingway «Paris é uma Festa».
Habitar a cidade é vivê-la, percorrê-la, mesmo sem destino, conhecer os seus recantos, identificá-los pelos aromas, dos cafés, dos restaurantes, espreitar as montras nas ruas, perder o olhar nos edifícios pela enésima vez, frequentar os jardins e acabar na praça, cedendo à tentação da eterna nostalgia da ágora ateniense.

Fazer compras pode ser uma excelente forma de fruir a cidade. Sê-lo-á ou não, consoante saiamos para a rua ou nos encerramos num shopping.
Nos tempos modernos, as grandes superfícies comerciais cercam as cidades e, de alguma forma, desabitam-nas. Começam por se instalar na periferia, junto a rotundas e outros nós rodoviários, com acessibilidades fáceis e garantia de estacionamento. Anunciam depois preços imbatíveis e todas as lojas das grandes marcas ao dispor do visitante, num único espaço em que tudo se encontra com comodidade e conforto. A urbe despovoa-se em incontáveis veículos a demandar os oásis do consumo. Em grande parte das antigas lojas da cidade, o deserto.
Nos tempos que correm, chamar as pessoas para o centro da cidade nos seus momentos de lazer e de compras é lutar contra o futuro que começou há muito. Mas às vezes o futuro reserva-nos surpresas que no passado nada fazia prever.
Há exemplos de novos estabelecimentos caldenses que resistem ao cerco e se afirmam pela diferença, pelo pormenor, pela genuinidade dos seus produtos: pastelarias, padarias, lugares de fruta. Crescem apesar da concorrência das grandes superfícies, sem se deixarem esmagar por ela, porque têm qualquer coisa diferente para oferecer: a qualidade, a atenção, o pormenor que faz os clientes sentirem-se especiais. Outros espaços há, que apesar de centenários resistiram à mudança de hábitos que o tempo trouxe: a velha e sempre renovada Praça da Fruta, um mercado com características únicas, que mantém viva a marca profunda de ruralidade que nos impregna; a Mercearia Pena, um dos cinco estabelecimentos comerciais do país nomeados na categoria Lojas com História dos prémios Mercúrio – O Melhor Comércio.
Tal como o poeta da Tabacaria, os caldenses vivem divididos entre duas lealdades: a que devem à loja, ao café, à pequena tasca do bairro, da rua, da infância; e a que lhes merecem os espaços high tech dos shoppings, onde tudo lhes é oferecido à luz suave do néon.
As redes sociais não ajudam. Através do Face enviam-se mensagens públicas de condolências ao amigo que perdeu um familiar, ou um abraço de parabéns àquele que celebra o aniversário. São abraços virtuais, como virtual se vai tornando a amizade. Substituem o abraço físico, presente, fraterno, que permite segredar palavras de conforto ou de felicitações.
Onde nos levará tudo isto? O futuro o dirá. E pode trazer surpresas, como a de uma loja que resistiu a mais de cem anos de mudanças.

Carlos Querido

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