RUI JESUS – “as ‘regalias’ na polícia compensavam o ordenado baixo”

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notícias das CaldasCASADO DUAS FILHAS, DOIS NETOS E UMA NETA

Isto está tão diferente. Quando aqui comecei a trabalhar, no dia 4 de Junho de 1975, ainda nem se falava em a polícia vir a sair daqui. Passei aqui 21 anos da minha carreira profissional na PSP. Isto está bonito e engraçado e foi boa ideia terem posto aqui a escultura do polícia do Bordalo Pinheiro.

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No primeiro andar funcionava a esquadra, a secção de justiça, os calabouços, a messe, a barbearia (havia um polícia barbeiro) e aquilo que nós chamávamos de cantina, que era uma loja onde os polícias, os militares e os funcionários públicos podiam vir fazer compras. E nos rés-do-chão, nessa altura ainda só havia a antiga prisão. Só mais tarde se fizeram obras e a esquadra passou cá para baixo.
Fico satisfeito de ver este edifício valorizado porque tenho boas memórias daqui. E também algumas más porque isto de ser polícia foi uma vida dura, sobretudo as noites de patrulha, o trabalho nos feriados, no Natal, no Ano Novo. Percorri muitos quilómetros a pé, em noites geladas com a humidade a entrar-me nos ossos. Mas foi a profissão que eu escolhi e não me arrependo.
Nasci em 20 de Agosto de 1942 em S. Bartolomeu, no concelho da Lourinhã. Foi lá que fiz a 4ª classe, que era uma coisa que na altura não estava ao alcance de todos. Fui o sexto de 15 irmãos. Até à idade de ir para a tropa trabalhei na agricultura e numa casa comercial em Peniche. Depois fui chamado para o serviço militar e fiz a recruta no RI5, aqui nas Caldas, fui para Leiria, para a Amadora e acabei a tropa numa pequena unidade muito pouco bélica – a casa de repouso para militares de Runa (Torres Vedras). Tive sorte – não fui mobilizado para o Ultramar. Ainda hoje não sei porquê, mas não foi nenhuma cunha. Dois dos meus irmãos acabaram por ir para Moçambique e para a Guiné.
Finda a tropa vim para as Caldas porque arranjei trabalho na Rol (hoje Schaeffler). Corria o ano de 1966 e durante dois anos fui operário. Foi na fábrica que conheci a mulher, a Outelinda, com quem viria a casar em 1967.
Em 1968 eu até nem ganhava mal e tinha um emprego estável. Mas decidi concorrer para a polícia. Já tinha 27 anos e estava no limite para poder entrar. Não foi pelo ordenado porque esse era baixo e até passei a ganhar menos do que na Rol. Foi sobretudo porque tínhamos alguns benefícios: reforma mais cedo, descontos nos transportes, assistência médica. Hoje já não é bem assim e continua a ganhar-se mal. Mas estas “regalias”, como agora dizem, na altura eram importantes e eu já tinha a minha filha mais velha e precisava de ter alguma estabilidade.
Entrei em Janeiro de 1969 na Escola de Polícia que na altura funcionava nos Pavilhões do Parque. Nesse tempo o curso era de quatro meses. Hoje é de um ano lectivo. Em Maio fui logo colocado em Lisboa na esquadra da Encarnação, perto do aeroporto. Cheguei várias vezes a ir policiar as chegadas e partidas do Presidente da República, o Américo Tomás na Portela. O meu primeiro serviço foi ficar durante a noite a guardar o corpo de um enforcado que estava pendurado numa oliveira. Ali fiquei sozinho até que de manhã apareceram os delegados de saúde e do Ministério Público.
Mas nos nove meses que estive em Lisboa o que me deu mais trabalho foram os acidentes de trânsito porque aquela é uma zona de muitas avenidas, cruzamentos e rotundas.
Os turnos eram de quatro horas de trabalho e oito de descanso. Mas como eu estava sozinho em Lisboa (a família ficara nas Caldas) eu aproveitava para fazer uns gratificados (serviços extra) nas horas de descanso.
Assim que pude aproximei-me de casa. Em 1970 consegui transferência para a Nazaré e logo a seguir fui inaugurar o posto da PSP de S. Martinho do Porto, onde fiquei cinco anos.
Uma noite estava eu de plantão, sozinho no posto, e oiço, numa pequena telefonia que nós lá tínhamos, que estava a haver uma revolução. Fiquei um bocado assustado, claro. E mais ainda quando houve aquele tiroteio na sede da Pide. Mas depois os comunicados do MFA apelavam a que a população deveria obedecer às forças de segurança porque estas estavam sob o controlo das Forças Armadas e aí fiquei mais calmo.

“Atire, senhor agente, atire nele!”

Mas foi, curiosamente, nesses tempos conturbados do pós 25 de Abril que me aconteceu o episódio que mais me marcou na minha vida de polícia. No dia 8 Setembro de 1974 evadiram-se oito reclusos da cadeia das Caldas. Recebi a informação em S. Martinho via telefone e fui para a patrulha na rua. Às tantas vejo um tipo de motorizada, sem capacete, que me pareceu suspeito. Fiz alto de paragem e ele deu uma guinada para tentar atropelar-me. Desviei-me e dei-me conta que ele podia ser um dos evadidos. A população ajudou-me a persegui-lo. Corremos atrás dele por aqueles campos entre o caminho-de-ferro e a estrada que vai para Salir. Às tantas o tipo larga a mota e põe-se a correr. As pessoas gritavam-me “atire, senhor agente, atire nele!” e ele continuava a fugir e nós a persegui-lo. Às tantas dei dois tiros para o ar e um terceiro mais ao baixo. Acertei-lhe. Ele caiu a gemer e quando dei por mim estava sozinho – todos se puseram a andar. Veio uma ambulância e ele foi evacuado. Salvou-se. Depois enviaram-no para a prisão de Leiria e ele voltou a fugir. Era um indivíduo perigoso. Mas eu pensei que ia ficar com a minha vida estragada.
Felizmente havia naquele tempo oficiais da polícia e do Exército que faziam férias em S. Martinho e tive o apoio deles. Acabei por ter um louvor e seis dias de licença. Se fosse hoje, eu teria ido para a prisão.
Aliás, há um antes e um depois nesta profissão de polícia. Dantes não tínhamos os meios de transporte, nem as telecomunicações que há hoje, mas tínhamos autoridade. Hoje há estas tecnologias todas, mas não temos autoridade.
No dia 4 de Julho de 1975 vim finalmente para as Caldas da Rainha. E aqui fiquei até 31 de Janeiro de 1996. Reformei-me com 54 anos.
Nas Caldas trabalhava-se bem. É uma terra onde toda a gente se conhece e isso ajuda muito. Ainda assim, fui chamado muitas vezes por causa de desacatos. Havia-os na rua de Camões, no bar do Oásis (que ficava aberto a noite inteira) e no Menú, que ficava na rua Fonte do Pinheiro.
Nunca estive na investigação, mas uma vez conseguimos dar caça a um borlão que vigarizava as pessoas mais idosas. Ele actuava sempre às segundas-feiras, dia de mercado e apanhámo-lo. Foi a julgamento sumário e enviado para o estabelecimento prisional. Eu fui lá levá-lo e quando o entreguei, ele volta-se para trás, estende-me a mão e diz: “parabéns à polícia das Caldas porque eu já ando nisto há anos e só agora é que fui apanhado”.
Nas Caldas e em S. Martinho fui polícia sinaleiro, um trabalho de que eu gostava muito. Na altura não havia a variante de S. Martinho e todo o trânsito circulava por dentro da vila. E nas Caldas havia um sinaleiro no cruzamento dos Correios e da Rodoviária.
Outro dos trabalhos que mais gostei na polícia foi o de motorista. Andava com o autocarro da PSP e transportava os miúdos das escolas em visitas de estudo. Devido à minha atitude ponderada e ao bom relacionamento com as crianças, tive até um louvor.
Levava também os filhos dos polícias à praia, à Foz do Arelho, no âmbito das colónias de férias. Hoje estas coisas já não existem, mas na PSP éramos um bocado como uma grande família e tínhamos as tais “regalias” que compensavam os baixos salários.
Na esquadra das Caldas chegámos a ser 70 polícias. À messe vinham também almoçar funcionários públicas, das Finanças, do Tribunal, da Segurança Social. E os cozinheiros também eram agentes da PSP.
Quando me reformei, confesso que já estava saturado desta vida. Um ano antes tinha conseguido deixar de fazer noites – que é do mais difícil neste trabalho – pois fui colocado no bar da esquadra. O meu último ano, apesar de às vezes ir fazer uns gratificados em jogos de futebol, foi, assim, passado a servir cafés aos colegas.
Dei-me sempre bem com todos. Mas das chefias tenho de destacar o subintendente Joaquim Dinis Baroso, que foi o comandante com quem mais gostei de trabalhar.
Hoje tenho um ritual que é ir todos os dias de manhã encontrar-me com outros polícias reformadas num bar que nós temos junto ao Skate Park. No bairro onde vivo, há lá uns jovens da minha idade com quem me junto para conversarmos. E depois tenho outra rotina: levar e trazer o meu neto Zé Pedro à escola e ao conservatório.

 

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