Alberto Costa
advogado
Nestes tempos de transição digital, testemunhamos – quando não vivemos- situações insólitas que fazem pensar.
Há alguns meses, um munícipe dum concelho do Oeste dirigiu-se a uma estrutura local de um serviço público de âmbito nacional – um centro de saúde -para fazer a sua inscrição, condição de acesso a alguns dos serviços que presta. Quem o atendeu disse-lhe que a inscrição não podia ser feita presencialmente. Só por e-mail, acompanhado de cartão de cidadão e documento comprovativo da residência, digitalizados – critério que, segundo foi indicado, se aplicava a qualquer pessoa, de qualquer idade ou grau de literacia digital. Uma vez que a residência é acessível através do cartão de cidadão, que foi apresentado, ficou-se a saber também não existir no serviço o dispositivo necessário para essa leitura.
Assim, após uma deslocação e um atendimento presencial não resolutivos, retorna-se ao velho tempo da obtenção de documento comprovativo em papel, tão típico da fase anterior à da criação do cartão de cidadão (2007); depois disso, a “exigência” da via digital. Se esta última solução, como regra absoluta, resulta incompreensível em quaisquer circunstâncias numa estrutura de proximidade, aberta ao público, para retirar sentido a tudo isto bastaria que se respeitasse o “velho” objetivo de proibir o Estado de exigir documentos em papel com informações que já possui.
Ninguém imaginará que este episódio traduz alguma singularidade local ou sectorial. Todos conhecemos situações, em diversos contextos, em que o recurso a novas tecnologias nos serviços públicos vem acompanhada de soluções concretas injustificadamente danosas para os seus destinatários (ou algumas categorias deles) quando não mesmo comparativamente mais penosas. Este efeito é particularmente sensível no caso dos serviços públicos de diversa gama que asseguram “funções de proximidade”, em que, para lá do fator geográfico, relevam aspetos humanos, afetivos, comunicacionais, etc.
Há que recordar um facto muitas vezes esquecido: a administração pública, na sua relação quotidiana com os cidadãos, é uma face do Estado democrático cuja avaliação é tão, ou mesmo mais relevante do que a doutras que surgem mais diretamente associadas ao sistema político. Em particular nesta fase de “transição digital”, as falhas cometidas, a frustração, a irritação, o sentimento de abandono em contradição com proximidades prometidas, geram diariamente factores de indiferença e desafecção, quando não de hostilidade, em relação ao “sistema”. Aí está, a somar a outras, uma forte razão para não se dever calar o que não estiver bem na atuação da Administração perante os cidadãos. ■