[a propósito de O resto já devem conhecer do cinema, de Martin Crimp, no CCC dias 24 e 25 de Maio, numa coproução entre o Teatro da Rainha e o TNSJ (Teatro Nacional de São João)]
Tirésias sabe que o voo dos pássaros escreve. Lê o que significam os percursos que algumas asas traçam num céu alquímico, oxigenado de urgências pela tragédia que espreita. Nem todos os pássaros são de escritas cósmicas, de rasgar sentidos contra o azul em alto-relevo frenético, danças de bando. As gaivotas não servem, feitas ao lixo. Os pombos nem pensar, tão urbanos que até beatas levam para o ninho, queremo-los longe, qual paz qual quê. Os pardais, sem tamanho, voam pequeno, os tordos são complicados de ler, demasiados, parecem nuvens, confundem. Os corvos, por exemplo, são bons de ler mas ladrões, como os cucos, difíceis de ver no ar como as corujas e trangalhadanças, perturbam a pureza da leitura. As cegonhas é deixá-las, são de arrozais e melgas, de família no ninho, se bem que de voo magnífico. Interessantes são os milhafres, de porte possível, letra de se ler ao longe, têm ritmo adequado, é vê-los nas estradas a rapinar a olho. E os abutres, no seu sítio, os grifos mais que todos, em arribas e penhascos. Aquele voo amplo, senhor dos ares e o modo como o suspendem e se instalam num ponto do céu, parados por pura leveza, magia saída de um truque inexplicável dentro dos ossos, circo mitológico em acto. São bichos de outra era, de um tempo que coincide com o nosso porque os tempos viajam entre si. E o que lia Tirésias? Pela cidade, o que à cidade pudesse vir, acontecer. A relação entre a adivinhação e os destinos da comunidade é-lhe genética, instinto banhado em saberes ancestrais, das origens, arrancados ao chão que foi parindo uma história da vida em comum do bicho mais racional — dizem que é. Nasceu cego para ver melhor. Toda a sua ciência vive de olhos, cinema interior, de mão alheia, de uma voz próxima. O mais estranho, essa é porventura a ciência, é que acerta, a sua profecia é afinal diagnóstico. Mas primeiro está a acumulação de erros que se tornou doença, peste, gangrena geral, como agora. E isso lê-se com o nariz, o pântano fede.
Tragédia é por certo profissão e que, como aconteceu a Meneceu – ou a CRISTO -, alguém tenha de sacrificar a vida pelos outros-comunidade ainda tão jovem — é o que dizem que se faz nas guerras em nome de altos valores que, afinal, são quais e a quem beneficiam? Finalmente são anti valores, interesses mesquinhos, economia mafiosa, formas de roubar o chão de terceiros.
Felizmente que noutras culturas uma garrafa de uísque e uma galinha de pescoço cortado na hora, receita redentora, libertam o sítio da tragédia da infecção contagiosa, ajudam a resolver o problema. O sacrifício humano continua, como no tempo arcaico, sob outras formas, Também primitivas, semelhantes às dos tempos do mito, como acontece na cultura que vende a redenção à custa de bons pregos e espectáculos de rua. Para isso terá nascido a metalurgia. No paraíso não se vendiam pregos, nem maçãs, tudo se colhia, bastavam as mãos.
Tirésias é o meu próximo emprego. Na peça de Crimp O resto já devem conhecer do cinema. Eurípedes, a referência, As fenícias.
Fernando Mora Ramos
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