A suspeita

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Carlos Querido (Diretor Convidado)

No dia em que foi decretado o estado de emergência, saiu para as ruas desertas, sem máscara, nem cão pela trela, nem saco de farmácia ou de supermercado, com ar de desafio e um estranho sentimento de clandestinidade e transgressão. Durante breves momentos sentiu a euforia da liberdade subversiva, alheia a constrangimentos, regulamentos e limites. Cidadão exemplar, escrupuloso cumpridor de normas cívicas e fiscais, desde há muito não sentia a volúpia da rebeldia.
A angústia chegou com as vizinhas do sexto esquerdo, que o olharam como se o inquirissem. Da parte delas não havia explicações a dar, cada uma com a sua máscara e o seu saco de medicamentos. Mas ele, assim, de mãos a abanar, sem máscara nem saco nem cão, como justificava a sua presença naquele lugar?
Cumprimentou-as com uma vénia distante e cortês e sentiu-se na obrigação de explicar que ia à farmácia comprar umas aspirinas. Só então as velhas senhoras quebraram o silêncio apreensivo. Tem tido febre? Nada disso, sossegou-as. É uma velha enxaqueca. Pareceu-lhe que ficariam mais sossegadas se invocasse um sintoma anterior à pandemia. Não terá sido muito convincente, porque o interrogatório continuou. E tosse? Tem tido dores de garganta? Obrigado pela preocupação. Está tudo bem, apenas uma dorzita de cabeça. Libertaram-no, finalmente, com votos de melhoras e um último olhar de desconfiança.
Quando se afastava, a aragem fria provocou-lhe um espirro inoportuno e ameaçador. Um olhar de esguelha retirou-lhe a esperança de que elas não tivessem ouvido. Estavam ambas paradas no passeio, atentas ao novo sintoma suspeito, a conjeturar sabe-se lá o quê. Despediu-se novamente, com um aceno longínquo, tranquilizador, mas o estado de espírito mudara. Sentia-se agora suspeito. Que estúpido ter falado da farmácia. Podia simplesmente ter dito que ia ao supermercado e não haveria qualquer necessidade de explicações adicionais. Ninguém lhe iria pedir a lista de compras. Talvez fosse melhor retroceder para a segurança do confinamento, mas teria de dar um bom avanço às velhas. Raios as partam.
Estudava a geografia da cidade em busca de um atalho por onde pudesse ultrapassar as vizinhas sem ser avistado, quando surge ao longe o Francisco, de máscara, carregado de sacos de supermercado. Afinal a tarde estava ganha. Francisco, velho amigo, saudou ruidosamente de braços abertos. O amigo parou, recuou dois passos com o olhar apavorado e ofereceu-lhe o cotovelo. Desculpa, esquecia-me, tenho saudades dos nossos abraços, justificou-se enquanto se acotovelavam. Seguiram-se dois dedos de conversa, distante e temerosa, e o amigo lá foi, porque estava com pressa.
Restava-lhe a praça, ampla, arejada, orlada de árvores de folha perene. Que belas tardes ali passara em rodas de amigos, hoje ausentes, confinados, desaparecidos em combate. Sentou-se num banco e aspirou profundamente todo o ar que pôde antes de aparecer o polícia. Desculpe, senhor guarda, vim aqui para respirar, missão cumprida, grato pela advertência, já estava de saída. E lá foi, de regresso a casa, com a suspeita a alastrar como uma mancha.
Cabisbaixo, deixou-se cair no sofá com o desalento dum ruidoso suspiro. Está tudo bem contigo, questionou-o a mulher com suave apreensão. Lá fora o mundo está esquisito, resmungou. Encontrei as vizinhas do sexto esquerdo que me fizeram um julgamento sumário. Depois cruzei-me com o Francisco que galgou pela rua fora como se eu estivesse contaminado. Finalmente, um polícia repreendeu-me por estar a respirar na praça e mandou-me para casa. Dói-me a garganta. Tenho aqui encravado um qualquer grito de raiva, de revolta, de desespero, sei lá, exclamava enquanto afagava dolorosamente a parte frontal do pescoço. Estou com um vago receio, confidenciou, após uma pausa, quase em surdina. Dizem que o Freitas, o meu colega de Biologia, apanhou o covid. Aqui há dias, lá no Instituto, encontrei-o na biblioteca a consultar um calhamaço enorme, de três mil páginas, a Encyclopedia of Immunobiology. Falou-me da obra com tal entusiasmo que eu não resisti a dar uma espreitadela, particularmente num capítulo que ele me recomendou e que tinha acabado de ler. Não se consegue folhear um livro daquela dimensão sem lamber o dedo que passa a página, sem lamber o livro. Desgraçadamente, lambi o capítulo em que o Freitas tinha acabado de pôr as manápulas. Achas que me infetei? Mesmo sendo um livro com aquele título?

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