1.Esta duração

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João dos Santos
Diretor da ESAD.CR do Politécnico de Leiria

A consumação do futuro é uma expressão de Sto. Agostinho, nas Confissões, que serve de mote a um conjunto de alinhavos mensais sobre o tempo.
O primeiro é sobre um ano de muitos presentes, tantos ou mais do que os dias contados em estado de isolamento. Os presentes são tantos que criam a impressão de uma distensão do tempo, como um intervalo sem início e sem fim; talvez por receio de medir o que vem depois e na expetativa de se conseguir retomar o tempo onde foi interrompido.
Esta duração desliga-nos do presente e da sua experiência?
Suspeito que não houve qualquer interrupção, se calhar houve um momento único e global sentido em cada casa, percebido como o início desta distensão do presente em tempo nenhum. O momento em que percebemos o quotidiano alterado – quando ficámos recolhidos por duas, três, quatro, cinco ou mais semanas em casa – terá marcado o início da ideia de interrupção.
Esta duração: um presente que não é presente, nem passado, nem futuro?
Em 1977, quando uma geração gritou “no future”, fê-lo por um tempo diferente, talvez melhor. Curiosamente, muitas vozes presentes, ao clamar pelo fim da distensão do presente, fazem-no encurtando o futuro, tornando-o pretérito antes de acontecer – gritando no futuro, numa anestesia global.
Um ano de vagas da pandemia transportou-nos de uma fase de intensa mobilização total ao sentimento de não haver presente para gozar, da vida se limitar a passar, enquanto direcionamos a atenção para um momento futuro. O quotidiano ficou difuso.
No início deste tempo pandémico foi proposto um novo termo: nova normalidade e, com ele, um horizonte cíclico de retoma gradual do quotidiano, nas suas atividades e experiências pré-pandémicas – o artifício ou sofismo consistiu na confusão do tempo presente, com “a lembrança presente das coisas passadas”, com o tempo presente do futuro. Ou seja, na consumação do futuro antes de lá chegarmos.
Ao mesmo tempo, as circunstâncias e o conhecimento que temos do presente estendem a possibilidade de o vivermos intensamente, para imaginar um futuro em que sentimos e gozamos cada momento intensamente, nas cidades e fora delas, sem retomar a momento algum interrompido e a construir outro futuro com a Terra.
Tenho esperança de que consigamos criar uma normalidade e encontrar o significado desta interrupção, para que esta duração não seja apenas distensão. ■

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