Vivemos em liberdade há 47 anos. A maior parte dos portugueses já não teve contacto directo com o regime anterior. Mesmo para os que não vivem longe desse ex libris da repressão que é o Forte de Peniche, é sempre mais fácil ignorar do que conhecer.
No entanto, a nossa sociedade viveu antes uma experiência ditatorial que durou mais do que isso: não foi uma solução transitória de governo mas um verdadeiro “sistema” que, sem falar nas sequelas, consumiu diretamente 48% do nosso séc. XX.
Recordemos que factos e ideias inconvenientes ou perigosos para o funcionamento desse “sistema” eram simplesmente impedidos de aceder à comunicação social por um serviço do Estado, noite e dia em ação (“censura prévia”, “exame prévio”).
Para além das polícias habituais, havia uma especialmente dedicada à repressão política que intimidava, perseguia, prendia, torturava (Pide/DGS) e intervinha também para barrar o acesso à função pública, a várias profissões e às candidaturas “eleitorais”.
Os partidos políticos eram demonizados e proibidos, à excepção do criado pelo poder (União Nacional/Acção Nacional Popular). As “eleições” eram encenações, habitualmente seguidas, pouco tempo depois, de vagas de prisões, incluindo de ex-candidatos (posso testemunhá-lo). No caso do general Humberto Delgado, a Pide assassinou o ex-candidato e o risco corrido nas urnas levou a ditadura a suprimir as “directas” – mesmo falsificadas – para a presidência. Embora a censura fizesse silenciar o fenómeno, os níveis de corrupção e a promiscuidade entre o poder político e o poder económico eram muito elevados. O sistema judicial não era independente e incluía mesmo órgãos preenchidos por juízes (“tribunais plenários”) especialmente criados para aplicar as penas e medidas de segurança pretendidas pela polícia política.
Um sistema ditatorial, sem falar nas sequelas, consumiu diretamente 48%
do nosso séc. XX
Perante um ambiente externo que ia evoluindo, o sistema perseverou num autismo nacionalista de fachada imperial (“orgulhosamente sós”, “tão bons como os melhores”), cuja última e fatídica expressão foram catorze anos de guerra colonial, com um legado traumático ainda vivo. Seria essa a adversidade que poria em cheque a sua proverbial resiliência.
Durante um longo período (1926-1974), a sociedade recebeu do poder uma forte mensagem denegridora da política, dos 2 políticos, dos partidos, do parlamentarismo, dos democratas, da democracia – da qual se dizia, na versão mais benigna, que nunca funcionaria em Portugal. Sob a ação de “incentivos” tão prolongados, contraimos marcas de complicada superação, contra as quais ainda hoje lutamos. É bem certo que os elementos culturais levam mais tempo a mudar do que as instituições políticas.
No próximo aniversário do 25 de Abril, o curso democrático já terá ultrapassado a duração do sistema ditatorial que o precedeu. Pelo menos para quem viveu sem ela, viver em liberdade é uma realidade diferente , que não pode ser reduzida à mesma métrica. Mas confrontada com a pesada e insustentável longevidade da ditadura, por maiores que sejam as dificuldades a enfrentar, a vida em democracia será sempre duma incomparável leveza. ■