A-dos-Aflitos

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Gazeta das Caldas - Era uma vez
| D.R.
Gazeta das Caldas
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O senhor Augusto decidiu meter-se em trabalhos. Tenho de esclarecer que o senhor Augusto tem a alcunha de Professor Pardal, é um entendido em todos os assuntos e, de tudo o que sabe, só exclui um tema:
– Não tenho ouvido para a música. De música não entendo nada!
Quem o conhece na aldeia de A-dos-Aflitos, onde mora desde que nasceu, já lhe sabe da teimosia, manias e outros caprichos. Anda agora pela casa dos cinquenta anos. Ruivo, alto, magro, uma barbicha encapelada de caracóis. Usa sempre umas velhas jardineiras. Terá dois pares delas, pois anda sempre limpo. Os vizinhos pensam que ambas as jardineiras são iguais e, quando uma está vestida, a outra estará a secar. Os vizinhos não podem ter a certeza? Bem, o senhor Augusto vive num casinha pequena e o quintal tem o muro alto e, para afastar os curiosos, o nosso inventor deixou crescer uma sebe espessa que não deixa sequer ver a corda da roupa a secar!
Voltando ao início desta história:o senhor Augusto decidiu meter-se em trabalhos.
Começou a coçar a cabeça, o que é já um sinal conhecido por todos, de que está a traçar algum plano. Em pé à porta de casa, os vizinhos mais atentos estão a observá-lo. Podem começar a preocupar-se e a tecer comentários, na tentativa de descobrir que nova invenção vai sair daquele toutiço privilegiado. Quem não se lembra de, anos antes, quando A-dos-Aflitos acordou ao som de uma série de rebentamentos sucessivos que tudo abanaram e faziam cair caliça aos bocados? Isto porque nessa madrugada, o Professor Pardal tinha imaginado um novo e mais barato sistema de iluminação para todos, feito de petardos com uma pequena carga explosiva. Colocados em blocos de cera, por sua vez introduzidos num tubo de cana. Estas iluminárias, tinha-as ele posto em todas as poucas ruas da aldeia, e mesmo em volta do fontanário, no centro de única praça da conversa fiada. Encontraram-se todos à porta de casa plantados e uma serpente de buchas estrondeando pelas ruas e esquinas da aldeia! Despenteados, bonés mal assentes nos cabelos,uns. Lenços a escorregarem pelo pescoço de vizinhas ensonadas. Zangados, todos.
Hoje,além de coçar a cabeça, o senhor Augusto olha muito para o céu. Viram-lhe a ponta da língua húmida de saliva a enfeitar o dedo indicador, farejando o lado de onde o vento sopra.
– Que nos vai daqui sair? – murmurou a senhora Alzira assustada.
– Telefona-se para os Bombeiros? – alvitrou a senhora Helena, limpando as mãos ao avental de riscado.
– Podes ligar ao teu Serafim, que é bombeiro, mas sem fazer grande alarde. Porque se depois não sai desgraça, de quem se vão rir, é de nós.
O Senhor Augusto começou a andar, com grandes passadas, como quem está a medir um certo numero de metros, desde a porta de casa, até ao lagar do vinho do compadre Arruda.
Daí, voltou novamente para a porta de casa.
– Aquilo é alguma instalação que ele vai por aí montar! – Voltou a tentar adivinhar a dona Alzira,
cada vez mais preocupada.
O nosso inventor de A-dos Aflitos aparecia agora na soleira da porta de casa com dois pares de botas na mão, e parecia estar a medir-lhes os palmos.
– Pelo menos desta vez o Professor Pardal não parece ter explosivos nem ferramentas pesadas!
Um dos vizinhos, com uns belos bigodes brancos e a alcunha de “Estaca”, porque era quase tão teimoso como o senhor Augusto, declarou para quem, à sua volta, o quis ouvir:
– Vou tirar-me dos meus cuidados. Vou perguntar ao Augusto que anda ele a cozinhar mesmo aqui nas nossas barbas.
– Oh! Pardal? Tu que andas a fazer?
Apanhado de surpresa, o Professor Pardal deu-se conta de que quase toda a aldeia o mirava. Respondeu, algo acabrunhado:
-Mandei deitar meias solas nestas botas há tão pouco tempo! E já têm buraco. Fui-me queixar ao Jeremias, o nosso sapateiro, e que me diz ele?
Todos os ouvintes estavam , nesta altura do relato, de boca aberta.
– Diz-me ele: Augusto, quantas vezes por semana vais ao Arruda buscar uma caneca de vinho? Três vezes, verdade? Já contaste quantos metros são de tua casa até à adega? Pois olha, conta os metros, multiplica pelo tamanho das solas, volta a multiplicar pelo número de idas e voltas, e divide pela conta que me pagaste. No fim hás-de ver o buraco.
A-dos-Aflitos suspirou de alívio.