No dia em que eu nasci, terça-feira dia 13-2-1951, o calendário do Almanaque Bertrand assinala «As cinco chagas de Cristo». Não sou uma pessoa especial, sou apenas um dos 107.756 rapazes nascidos em 1951. Raparigas foram 100.114, casamentos 66.689, mortos masculinos 53.394 e femininos 52.079. A população era de 8.477.270 e os divórcios apenas 1.223. Era o tempo da «estrada de macadame» e Craveiro Lopes preparava-se para suceder a Carmona com Quintão Meireles a perder e Rui Luís Gomes fora da corrida.
O Sporting Clube de Portugal conquistou o Campeonato Nacional da 1º Divisão á frente do F. C. Porto e do S. L. Benfica. Este, por sua vez, venceu a Taça de Portugal batendo a Académica no Estádio Nacional. Curiosamente os anúncios dos cigarros «Sporting» da Companhia Portuguesa de Tabacos inserem a imagem do Estádio Nacional em vez do estádio do Sporting. Uma distracção dos publicitários ou então a rejeição da foto do verdadeiro estádio do Sporting em 1950 que sempre existiu desde 1906 na Alameda das Linhas de Torres.
O Almanaque Bertrand de 1951 revela-nos o esplendor do efémero: um ano depois de Pierino Gamba que se deixou fotografar com os Cinco Violinos do SCP, esteve em Lisboa, em Abril de 1950, Roberto Benzi, de apenas 11 anos, a dirigir a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional. O calendário serve, por exemplo, para perceber que o meu nascimento coincidiu com a lua em quarto crescente. Houve lua nova a 6, lua cheia a 23 e quarto minguante a 28. O apogeu lunar foi em 15-2-51 às 10 horas, o perigeu tinha sido a 3-2-51 às 15 horas. O primeiro domingo da Quaresma tinha sido a 11-2-51 e a Páscoa foi a 25-3-51. A Pascoela foi a 1 de Abril, dia da festa na Granja Nova.
Para a malta nova, que não sabe, um almanaque era um livro onde, além de palavras cruzadas e de charadas, paciências, provérbios e outros passatempos, se publicavam anedotas e obituários, fotografias e crónicas de viagens. E também literatura. O do meu ano tem, entre outros, textos de Alexandre Herculano, Aquilino Ribeiro, Cabral do Nascimento, Maria de Carvalho, Olavo Bilac, Óscar Ribas, Pedro Homem de Melo e Vasco Matos Sequeira. Por isso mesmo o Almanaque Bertrand, coordenado por M. Fernandes Costa, tem o subtítulo de «Secção Literária, Científica, Artística e Recreativa». A «Festa Redonda» de Vitorino Nemésio custava 25 escudos e hoje pedem-nos 100 euros por ela num alfarrabista. É um dos livros da minha vida mas outros autores são publicitados no Almanaque: Alexandre Herculano, Aquilino Ribeiro, Carlos Malheiro Dias, João de Deus, Raul Brandão, Venceslau de Morais, Teixeira de Pascoais, António Botto e Camilo Castelo Branco. E também autores estrangeiros como Jules Verne. A propósito de literatura, pó e posteridade, Aquilino Ribeiro conta uma história deliciosa numa coluna intitulada «Vaidades literárias»: «No Chiado vi eu quanto a glória é restrita. Aconteceu-me entrar numa farmácia e encomendar um remédio, cuja manipulação exigia certo tempo. Dei o nome. O praticante, se não era já farmacêutico diplomado, pegou no lápis e, com ele em cima do papel, proferiu com seriedade não fingida:
– Aclino… escreve-se com c ou com q de haste?
– Como queira. Todos os caminhos vão dar a Roma. Escreva com k que dá o mesmo.
Não me admira. Na Rua Cadet encontrei a mulher dum antiquário que nunca tinha visto a Torre Eiffel.
– Nem por cima dos telhados? – observei eu.
– Olhe, nunca reparei.»
As cinco chagas de Cristo ficam, afinal, para outra crónica.