Este Consumo Que Nos Consome – “A Planície “, um jornal regional de jovens escritores

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Em Moura, no Baixo Alentejo, nasceu em 1952 um jornal quinzenário onde três anos depois surgiu um suplemento muito especial “Ângulo – Das Artes e das Letras”, aberto à criação literária e ao debate cultural. Foi uma iniciativa praticamente única no seu tempo, “A Planície” extinguir-se-á em 1964 mas deixou um rasto inesquecível, como se pode ler em “A Planície, uma voz na década do silêncio”, por Alberto Franco (Campo das Letras, 2008).

Os jovens de “A Planície” puderam contar com apoios intelectuais e artísticos de grande mérito como Herberto Helder, Vergílio Ferreira, Mário Cesariny, Fernando Namora, Natália Correia, Eugénio de Andrade, Irene de Lisboa e Vasco de Castro. O livro é um testemunho impressivo sobre a imprensa e a vida portuguesa desses anos 50/60, em que lá do fundo do Alentejo um punhado de jovens fez surgir um jornal, um projecto cultural, um movimento denominado Convívio que era um verdadeiro apelo de fraternidade. Misturou-se regionalismo, entusiasmo pelo jornalismo e pela literatura, à sua sombra defenderam-se causas locais como estabelecimentos de ensino e até o cineclubismo. Encarada a distância, foi um jornal/projecto de grande entusiasmo e que fermentou o diálogo possível entre “presencistas“, neo-realistas, sergianos e surrealistas, a despeito de polémicas, de arrufos e até de abandonos do projecto dos jovens de Moura.
Até 1952, quem quisesse saber de notícias da vila lia o “Jornal de Moura”. Nessa data aparece “A Planície”, quinzenário cultural e regionalista, dirigido por José Maria Varregoso, Miguel Serrano era o Chefe de Redacção e José Barão o administrador. Varregoso era professor primário, Serrano empregado de escritório e Barão escriturário-chefe da empresa Noudar. “A Planície” prometia bater-se pelo desenvolvimento local e pela elevação “moral e cultural” da população. E assim foi, em 8 páginas apareciam apontamento sobre o quotidiano da vila, recomendações do pediatra, o comentário internacional, noticiário desportivo, uma rubrica sobre poesia, dava-se voz aos professores e alunos da instrução primária. A cultura tornou-se um verdadeiro pólo de atracção, e em 1955 surgiu um suplemento “votado às questões literárias”, graças à colaboração de Afonso Cautela, então professor primário e dinamizador do projecto ligado ao movimento Convívio. O jornal passou de 8 para 12 páginas, Varregoso abandona a direcção e é substituído por Domingos Janeiro. O número de rubricas enriquece, chega ao teatro, cinema, as artes plásticas, muitos poetas, fala-se da música e da literatura infantil, surgem polémicas entre defensores dos diferentes movimentos artísticos, aparecem mesmo delegações de “A Planície” no Porto e em Lisboa.
À distância de meio século, e sabendo nós o que foi a prática da censura, surpreende e comove este punhado de jovens que atraíram intelectuais como António Quadros, António Sérgio ou António José Saraiva, que faziam crítica ao cinema e ao teatro, que desvelavam os nomes de uma geração que se lançava nas letras e nas artes. Aos poucos, os dinamizadores afastam-se de Moura, colocados em novos empregos, em 1964 a “A Planície” extingue-se por razões económicas e por cansaço de José Barão, que ficara a tomar conta do jornal.
Alberto Franco foi ouvir diferentes testemunhos, preparou uma excelente antologia, prestou uma tocante homenagem ao jornal e ao suplemento cultural “Ângulo”. “A Planície” obra do voluntarismo de jovens autodidactas foi uma bonita aventura cultural a que aderiram os mais velhos, de diferentes proveniências políticas e sensibilidades culturais. Afinal, nesses tempos de falta de esperança, houve sonho e rompeu-se o silêncio. Foi um projecto assombroso de activismo sem programa pré-definido, como depôs o desenhador de humor Vasco, um projecto centrado num encontro fraterno, incómodo, naturalmente contraditório e à procura de uma via pedagógica que iluminasse as novas gerações. E a verdade é que apareceram escritores e artistas de mérito, tendo alguns deles navegado nesse prodigioso barco à solta que foi “A Planície”.

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