Naquele dia a mãe tinha conseguido chegar a casa mais cedo do que o habitual.
Tinha vontade de estar com a miúda, mas também algum sentimento de culpa pelo facto de estar a trabalhar muito e chegar a casa estoirada. Portanto, percebeu depois, não estava tão tranquila como desejava estar.
Costumava brincar e dizia que de manhã quando saíam de casa, saía uma mãe e que à noite, voltava um destroço…
Mas pronto, naquele dia tinha conseguido voltar mais cedo, a tempo de lanchar com ela. Disse à Luísa para sair mais cedo, para estarem só as duas.
A miúda vinha embirrativa. Queixou-se da escola, dos colegas… que não sabia o que lhe apetecia para o lanche… que, que, que…
Sorridente e otimista, foi dando várias sugestões e propondo coisas para fazerem as duas… que era bom estarem com tempo e poderem fazer um programa diferente…
Nada. Não lhe apetecia fazer nada de especial… que estava chateada com as amigas da escola… que a tinham deixado de fora e que a professora também tinha ralhado com ela porque o caderno não tinha boa apresentação… Enquanto falava, revirava os olhos com um ar irritante e provocador…
Ela continha-se para não se irritar e não estragar a tarde… mas começou a ficar difícil. Para além da irritação, sentia a frustração pela falta de harmonia e de prazer que estava a acontecer.
Às tantas virou-se e disse: “Olha, tu estás a abusar da minha paciência e a ser malcriada… isto ainda vai acabar mal e com uma zanga entre nós… vê lá se tens calma e se atinas menina…”
A filha ficou calada. Por experiência ela já antecipava que aquele silêncio não significava uma concordância, mas sim uma busca de argumentos.
Finalmente disse: “Oh mãe, tu sabes que eu me porto bem na escola… até sou boa aluna e tudo e sou bem educada… a senhora do café está sempre a dizer que eu sou muito educadinha… que digo sempre o “bom dia” e a “boa tarde”, o “com licença”, o “se faz favor” e o “obrigada”… o senhor da papelaria a mesma coisa… Agora… eu preciso de me portar mal nalgum lado… não posso fazer tudo bem… Onde é que queres que eu me porte mal?… Na rua ou em casa?…”
Deu-lhe que pensar.
Difícil a arte de amar, sejam os filhos ou outros. Difícil aceitar que não temos só coisas boas para a troca… nem no dar, nem no receber. Difícil conter a raiva, a frustração, o medo… que por vezes nos é despejado em cima, ou que despejamos em cima de alguém. Difícil não manter um registo de acção – reacção, de desgaste, de confronto e de exercício de poder.
Difícil também encontrar um registo equilibrado na expressão da zanga e do negativo com a expressão de prazer e do bem estar… Não é possível viver só com uma parte. Não existe só uma parte.
Difícil encontrar e definir os limites… os próprios e os dos outros… nos diferentes tipos de relações, de amor e nas diferentes etapas da vida.
Pensou que o que a miúda estava a questionar se poderia colocar desta forma:
“Como é que te posso amar, se não me posso zangar contigo?”
Ou talvez mais ainda desta:
“Como é que me podes amar, se não me posso zangar contigo?”
Ou talvez uma não faça sentido sem a outra…
Paula Carvalho
paulatcarvalho@gmail.com