Maquiavel e Pessoa já provaram que é possível um príncipe e um banqueiro trocarem os respectivos lugares no conto e no ensaio – situação deveras paradoxal, se atentarmos no regular funcionamento do imaginário ocidental.
Do alto da minha modéstia, não me importo de contribuir para esta desconformidade doutrinária, trazendo à colação uma outra figura institucional – o autarca, para comprovar, ao arrepio do que defendia o grande Vieira, que certas qualidades se sobrepõem a certas virtudes.
Antes de mais, urge clarificar que o autarca que interessa para esta minha croniqueta de hoje, não é um autarca qualquer. Não é o homem laborioso e agenciador que, por vontade própria ou por ir habilmente contornando as manhosas curvas do destino, numa manhã de ressaca pós-eleitoral na sequência de uma ingestão excessiva de bajulação e sabujice, se vê sentado a uma secretária ao comando da edilidade, ainda atónito, mas também inebriado com a sua pessoa e com as virtudes públicas e privadas que o terão levado até ali.
O Autarca que aqui interessa é o homem que fabrica o futuro com a matéria de que são feitos os sonhos (e aqui prometo não recorrer mais a intertextualidades fáceis, porque aos pequenos fica mal engrandecerem a sua prosa com o génio dos que, entre os grandes, são os maiores).
É o homem que não aspirou ao lugar que ocupa, que não se coloca no centro da acção executiva, para dar centralidade ao interesse público, que faz bem porque só assim sabe fazer, que se satisfaz com o sentimento de dever cumprido, que corre sem atropelar, que naturalmente se coloca no lugar do outro, que sabe ouvir e negociar, que concilia verdade e utopia, que decide sem impor, que cede sem capitular, que sorri com os olhos, que ama a sua terra e os seus conterrâneos e que sai da mesma forma que entrou, ou seja, levando consigo o sentimento de que só compreendendo e admirando a grandeza das coisas, somos capazes de estar à altura delas.
Chegados aqui, importa identificar a qualidade que produz tal homem. E a qualidade, julgo eu, é a simples e acidental circunstância de ser feliz.
Ser feliz não é uma virtude, nem uma aquisição. Ser feliz é uma qualidade tão inata e tão natural como ser loiro ou ser alto. Não merece especial louvor, nem é motivo de admiração, mas é a matéria-prima a partir da qual, natural e espontaneamente, se geram todas as virtudes necessárias a uma boa gestão da coisa pública.
Nesta época de santas festas e de renovação do calendário, que é como quem diz, a abertura de doze páginas onde tudo, mas mesmo tudo, se pode ainda inscrever, aproveito para desejar a todos os meus concidadãos a boa fortuna de encontrarem um Autarca Feliz!
Conceição Henriques
Couto.henriques@gmail.com