O fim da ingenuidade

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Bruno Mantraste
Artista Plástico

É estranho como este ano acaba por estar a passar tão rápido, começo a dar conta da forma como o tempo se desenrolou nestes últimos nove meses onde sete foram de pandemia, pandemia à qual já nos habituamos mas que mesmo assim continuamos a estranhar. Cheguei a acreditar que a situação viesse a despertar algo de novo e bom na forma como nos relacionamos uns com os outros, mas afinal ficou tudo na mesma ou pior e por um lado ainda bem, porque fingir que estávamos mais unidos e tolerantes, mais humanos e sensíveis, não era suficiente.
Esta explosão de ideologias que se deu depois da quarentena e que se mantém como um sintoma do próprio vírus, para além da tosse, da febre e da falta de gosto, implica o surgimento de extremismos e de divisões. No entanto, não será isto o último suspiro de ingenuidade? Onde se percebe que as escolhas têm uma responsabilidade associada e onde não fazer nada, virar a cara e fechar os olhos não é uma escolha, pois quem escolhe assim fazer está no fundo a aceitar as coisas como são.
Talvez agora que a ingenuidade acaba seja altura de pôr fim à intolerância, a intolerância ao que é diferente, principalmente a ideias diferentes, e então a aprender a ouvir, a ficar em silêncio, a silenciar essa voz interior que não se cala e ouvir os pássaros, o vento e os outros. Mesmo que não concordem oiçam, pois quem quer ser ouvido tem de dar o exemplo e ser o primeiro a ouvir e porque tal como quando escutamos um pássaro ou o vento temos de estar em silêncio, devemos ouvir calados, sem interromper, sem pensar logo numa resposta, ouvir calados também opiniões diferentes.
Quem não aceita quem pensa de forma diferente e ao invés de ouvir agride com palavras cuspidas a negrito em capitulares, palavras que como punhos são fechadas, devia pensar que quem se magoa procura abrigo e o encontra em quem pensa da mesma forma, aumentando assim a polarização e da mesma forma cresce a raiva, raiva que amarga, e a amargura só nos prejudica a nós, é um cancro que nos tolda a visão e retira o bom senso. E pensar que tudo podia ser sanado ouvindo e só depois argumentando. Hoje todos sabem o que pensar, só não sabem é como pensar, o acto de pensar em si está desvirtuado, parece proibido mudar de opinião, o arrependimento não é aceite e o perdão já não existe, acreditamos no bem e no mal e não percebemos ninguém é bom ou mau mas que somos todos “mais ou menos”, e que é nas nossas falhas onde temos de intervir primeiro.
Para acabar queria expressar aqui os meus sentimentos à família da Dona Glória, que faleceu o mês passado. A Glória não era uma pessoa comum, era perspicaz, ácida, criava movimento e energia à sua volta e era parte da alma do Nadadouro. Deixou-nos tão rápido e tão cedo que custa a aceitar, mas ficam as histórias e todas elas com sorrisos. Haverá algo mais importante do que isso? Sejam felizes.