O injusto esquecimento na toponímia caldense

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Carlos Querido
Juiz Desembargador Jubilado

1. Testemunhos
Os leitores da Gazeta que me acompanharam em vários anos de colaboração com este jornal, sabem que não cultivo a narrativa na primeira pessoa, optando por silenciar o “eu”, para deixar ouvir os testemunhos diretos e os documentos que suportam os factos.
Permitam-me, no entanto, que abra uma exceção neste texto que se refere a uma personalidade muito presente nas memórias da minha infância.
O meu avô materno tinha um moinho de vento junto a um talefe, no ponto mais elevado do Casal Novo, de onde se avistava o Vale da Quinta, terra fértil de lotes agrícolas, a que as pessoas chamavam “talhos” – resquícios do sorteio dos baldios paroquiais de 28 de Abril de 1904 – onde se erguia “a casa dos pais do padre Zé”, Joaquim Alves e Maria Felicidade, ele embarcadiço, ela doméstica, nazarena, conhecida na terra pelo nome de “Maria Pexeneira”.
Como refiro num escrito anterior, nascer naquela época, naquele lugar, numa família humilde, era herdar um futuro que dificilmente poderia ir além do pequeno mundo que a vista alcançava, e que se resumia ao ciclo da terra entre as sementeiras e as colheitas, com os dias sempre iguais, de trabalho árduo e anónimo.
Nascido no ano de 1925, no Vale da Quinta, José da Felicidade Alves transcendeu a condição do berço, vindo a tornar-se, pelo seu carisma, pela sua coragem e frontalidade, e pela sua celebrada inteligência, numa figura de incontornável influência na década que antecedeu a mudança de regime em Portugal e naquela que se lhe sucedeu.
No dia do lançamento do Salir d’Outrora, conheci o Cardeal Patriarca José Policarpo, que me falou longamente do Padre Felicidade Alves, de quem foi aluno no Seminário dos Olivais, e de quem se tornou grande amigo.
Referiu-me o Cardeal José Policarpo, que o Padre Felicidade Alves foi, desde o Seminário de Santarém, onde se fez notar pela elevada classificação académica, o “filho dileto do Cardeal Cerejeira”, que apostava num “futuro glorioso” para o seu pupilo. E falou-me duma curiosa incumbência: nos dias de confronto com o Padre Felicidade Alves – antes da suspensão a divinis (de 2.11.1968), que antecedeu a excomunhão ferendae sententiae (8.08.1970), a que se seguirá a prisão pela DGS em 19 de maio de 1973 (em Caxias) e o posterior julgamento, com absolvição, no Tribunal Plenário da Boa-Hora no mesmo ano – o Cardeal Cerejeira, sabendo da amizade entre os padres Policarpo e Felicidade, solicita a José Policarpo a mediação do conflito, com a marcação de uma reunião, o que veio a ser recusado pelo Padre Felicidade Alves com este argumento: «desculpa, mas não posso encontrar-me com ele; se isso acontecer, caímos nos braços um do outro e isto nunca mais tem solução».
Referiu-me ainda o Cardeal, a cerimónia de «reconciliação do Padre Felicidade Alves com a Igreja», através do casamento católico que celebrou, e a «imensa gratificação pessoal para o celebrante».
Também o Padre Eduardo Gonçalves – um bom amigo e prestigiado sacerdote – me falou da inteligência fulgurante de Felicidade Alves, que conheceu como professor no Seminário dos Olivais, célebre pela profunda erudição que revelava nas suas aulas (Teologia Fundamental, Teologia Dogmática e História Eclesiástica).
A mesma referência à inteligência e ao carisma de Felicidade Alves me foi referida pelo Padre Fernando Campos, reitor do Seminário de Santarém, colega de seminário e grande amigo do padre caldense.
Cabe referir, finalmente, o testemunho do advogado Mário de Carvalho, que me disse ter assistido a uma brilhante conferência dada pelo Padre Felicidade Alves no “Casino do Parque”, revelando dotes de oratória que muito o impressionaram.
Mas é tempo de falar dum livro, leitura imperdível de quem queira conhecer com profundidade o agitado percurso de vida deste sacerdote.
Chama-se Padre Felicidade – O Oposicionista Praticante, da autoria de Ana R. Gomes, editado pela Tinta da China.
Seguem-se algumas notas de leitura deste livro, com referência para as respetivas páginas.
2. Da relação filial à rutura com o Cardeal Cerejeira
Entre as várias as referências ao afeto e à admiração do Cardeal Patriarca pelo sacerdote do Vale da Quinta, recolho os seguintes exemplos:
– Em junho de 1955, antes de o designar para a paróquia de Santa Maria de Belém, o Cardeal Cerejeira, em cartas dirigidas ao Padre Felicidade Alves, realça «os dotes extraordinários de inteligência» que lhe reconhece, salienta «tantas esperanças» que coloca no futuro do jovem sacerdote, afirmando-se consciente de que «há quem te julgue orgulhoso de natureza», asseverando, no entanto – «o caminho da humildade te dulcificará o temperamento, habituar-te-á a ser condescendente, desprendido de ti, maleável, amável. Só te aperfeiçoará» (p. 61);
– Em setembro de 1965, em postal remetido de Roma, o Cardeal Cerejeira suplica ao Padre Felicidade Alves – «O pastor – e pai – roga ferventemente a Deus que a ovelha – e esta preciosa – se não tresmalhe do rebanho. Espera-a ansiosamente» (p. 94);
– Em 15 de maio de 1968, antes da suspensão a divinis, em carta dirigida ao Padre Felicidade, na qual dá conta da decisão de o retirar da paróquia de Santa Maria de Belém, diz o Cardeal que o faz, por se sentir «obrigado, com o coração partido, a desligar-te do múnus de pároco», assegurando – «esta carta é a mais dolorosa por mim escrita a um sacerdote em toda a minha existência de Patriarca de Lisboa. Daria a minha vida para não ter de a escrever. E a um sacerdote de quem tanto esperei e estimo» (p. 108).
– Em várias missivas o Padre Felicidade Alves declara «o imenso carinho e dedicação pessoal» que dispensa ao Cardeal, como sucede com uma carta de 12 de fevereiro de 1965 (p. 61).
A relação de profundo afeto entre estas duas figuras carismáticas não resiste aos sucessivos conflitos decorrentes da rebeldia do Padre contra o ascendente paternal e hierárquico do Cardeal, como nos dá conta o livro citado, onde se referem várias admoestações do Cardeal, relativamente à conduta do Padre Felicidade na liturgia, nomeadamente:
– Por ministrar a comunhão aos fiéis enquanto estes permaneciam de pé e não de joelhos, ao contrário do que era uso na época (carta de maio de 1958, p. 76);
– Por celebrar a missa, voltado de frente para a assembleia e não de costas, como era tradição (p. 78);
– Por denunciar nas homilias «a guerra colonial, a PIDE, a censura e pedir ao país uma revolução ‘político social’», segundo o depoimento de João Bénard da Costa (p. 46), manifestando a sua oposição à guerra colonial desde o seu início, com uma homilia proferida ainda no ano de 1961 (p. 79);
– Por ler numa homilia excertos da mensagem de Natal de Paulo VI, recente a uma questão tabu – a recente viagem do Papa à Índia (p. 83);
– Pela Exposição que fez em 19.04.1968 ao Conselho Paroquial de Santa Maria de Belém (o que torna a rutura inevitável e irreversível) – Perspectivas Actuais de Transformação nas Estruturas da Igreja – na qual o padre caldense afirma, nomeadamente: «O movimento gerado pela acção de Deus através dos Profetas e de Jesus, é muito mais revolucionário do que o marxismo. Em nenhuma ideologia encontro um potencial de energia atómica de transfiguração humana tão grande como na minha religião. E não dou o direito a que um marxista lute mais pela justiça do que eu! Por isso não me sinto atraído a filiar-me em nenhum partido político revolucionário. Mas sou militante do Movimento Super-Revolucionário de que Cristo é Cabeça» (pág. 106).
– Pelas reivindicações que faz na referida Exposição, no capítulo «Sentido de responsabilidade pessoal na vida política do meu país», preconizando a destruição dos mecanismos e organismos totalitários do regime, exigindo o fim da censura prévia e da opressão policial, reclamando a garantia efetiva das liberdades e direitos fundamentais, e apelando ao «fim do regime colonial» ■

(continua na próxima edição)