Ao nível musical, pode definir-se Fado por um género de canção popular urbana desenvolvido em Lisboa a partir do segundo terço do séc. XX. No período oitocentista a sua génese é em grande parte comum à canção de Coimbra, mas as duas tradições apresentavam já características estéticas e contextuais muito distintas na transição para o século XX e autonomizam-se por completo no decurso das duas décadas seguintes. A definição é de Rui Vieira Nery, musicólogo e filho do guitarrista de fado Raul Nery, encontrando-se na Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX. Sobre as origens do Fado, indica também Rui Vieira Nery, que as primeiras instâncias de uso desta palavra, aplicada explicitamente a um fenómeno musical, surgem-no nas descrições dos viajantes e ensaístas estrangeiros das primeiras décadas do séc. XIX (Balbi, Freycinet, Pohl, Schlichthorst, Weech). Referem-se a uma dança cantada de negros desenvolvida no Brasil colonial, dançada por pares num contexto popular de terreiro, envolvendo contacto físico ocasional entre os dançarinos, e aparentada com as demais danças afro-brasileiras dos finais do séc. XVIII, em particular com o lundum. Sendo de admitir que o fado, pelas suas associações no seu contexto de origem ao circuito dos negros escravos e libertos e ao das camadas mais baixas do proletariado urbano, se tenha naturalmente implantado, sobretudo, num primeiro momento, nos bairros lisboetas mais pobres. E é aqui, precisamente, que chegamos ao quadro O Fado de José Malhoa. A expressão de vida marginal urbana de um fenómeno musical transgressor de bairros citadinos pobres, que retrata Amâncio Augusto Esteves e a sua amante Adelaide “da facada”, num cenário que narra uma “cultura inventada que era precisamente exacta” (- nas palavras da Historiadora da Arte, Raquel Henriques da Silva). Muito já foi dito e muito já foi escrito sobre a tela de Malhoa, desde 1909-1910, até ao presente. Mas o que me interessa analisar e investigar são os ecos, metamorfoses, apropriações e mutações com que esta obra tem sido, no fundo, homenageada ao longo dos tempos. O Fado tem sido relembrado, amado, odiado, copiado, alterado, criticado, satirizado, em vários registos, desde reproduções em jornais e revistas, a azulejos, caricaturas, fotografias, peças de teatro, obras literárias, canções e até no cinema. No que concerne ao cinema, detenho-me no ano de 1947, quando Augusto Fraga realiza um filme onde é recriado O Fado de Malhoa. Amália Rodrigues veste-se de Adelaide e entra no quadro, cantando um tema com letra de José Galhardo e música de Frederico Valério, intitulado, precisamente, Fado Malhoa. Neste poema cantado pela diva do fado, razão é dada para a necessidade urgente do estudo que efectuei, nas áreas da iconografia/iconologia e semiótica musical, pois Amália canta: “(…) faz rir a ideia de ouvir com os olhos, Senhores (…)”. Pois é mesmo essa a questão. É que é possível fazer ouvir a música interior do quadro, ao vê-lo. E para quem não o consegue fazer, Amália fá-lo, ao encher de música e de alma uma tela. E foi isso o grande mérito do filme de Augusto Fraga: pela voz de Amália, poder escutar o que encerra este quadro de Malhoa. Poder escutar o fado-música e o fado-destino de Adelaide e de Amâncio e também de toda uma nação. Da nação portuguesa. Não tenho dúvidas de que esta tela de Malhoa continuará a cativar (e a provocar) artistas no futuro, que hão-de olhar para O Fado, inspirar-se e continuar a produzir arte, d’après Malhoa.
Luzia Aurora Rocha

































