O Verão de S. Martinho

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Isabel Xavier
professora

Em S. Martinho do Porto, estância balnear onde passei os meses de agosto e setembro da infância e da adolescência, cada dia cumpria-se como um ritual. De manhã, usávamos “roupões de praia”, entretanto caídos em desuso, feitos em pano “turco”, como as toalhas, porque era de manhã que tomávamos banho na baía. Após o banho, que só podia ocorrer duas horas depois do pequeno almoço, mudávamos de fato de banho e comíamos um bolo, previamente comprado a uma das vendedeiras que percorriam o areal à frente das barracas, com as latas de bolos à cabeça e os sacos de batatas fritas pendurados nos braços.
Além dessas verdadeiras heroínas, (a vida custava muito a ganhar naquele tempo), havia também o vendedor de “barquilhos”, transportados dentro de uma lata cilíndrica com uma “roda da sorte” no topo. O cliente tinha que rodar esse dispositivo, definindo desse modo o número de barquilhos a que tinha direito. Foi uma das maneiras mais eficazes, julgo, de aprender desde pequena que a vida é injusta por natureza. Havia ainda as vendedeiras de tremoços e pevides, no consumo dos quais me viciei na adolescência.
À tarde, a indumentária era outra. Eu e as minhas irmãs vestíamos aquilo a que a minha mãe chamava “saias de praia”, uma espécie de vestidinho curto, de alças, com cuecas iguais, para que pudéssemos estar à vontade nas brincadeiras, mas também (julgo eu), para que nos lembrássemos de que à tarde o banho de mar estava interdito. Só se houvesse muito calor, o que em S. Martinho na melhor das hipóteses acontecia uma vez por ano, e depois de muita insistência nossa, é que a minha mãe concordava que fôssemos a casa vestir o fato de banho e mergulhássemos no mar, três horas após o almoço.
De vez em quando, combinávamos com um grupo alargado de amigos – vizinhos de barraca – fazer um dia diferente e íamos às praias em redor, aquelas a que podíamos deslocarmo-nos a pé, que contrastavam com S. Martinho pela aspereza das rochas e do mar, como a praia de S. Romeu ou a da Gralha. Em setembro, apanhávamos limo que vendíamos na cavalariça, para termos dinheiro suficiente para irmos ao cinema, já um pouco fartos da praia.
Após a morte do meu avô materno, a minha avó passou a acompanhar-nos em S. Martinho, mas houve anos em que durante uma parte do tempo visitava uma amiga dela que morava em Chaves, Trás-os-Montes. Lembro-me particularmente de um dia de setembro (1968) em que, ao regressarmos da praia, ao mesmo tempo que o meu pai chegava das Caldas, onde se deslocava diariamente para trabalhar, nos deparámos com a minha avó a descer de um táxi, parado à nossa porta, de malas e bagagens. Ficámos todos perplexos e o meu pai perguntou: “Então o que se passa? Veio de Chaves até S. Martinho de táxi?” Ao que ela respondeu: “Pois não! Logo que soube que Salazar ia ser operado à cabeça, após a queda que deu, decidi vir para baixo o mais depressa possível, antes que comecem tumultos e desacatos que me impeçam de me juntar à família.” Resta dizer que gastou uma pequena fortuna em tão inusitada deslocação…. ■

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