Pela manhã, ao ritmo a que a cidade acorda e ainda com a cara com que dormiram, umas centenas de caldenses arrastam-se até ao terminal rodoviário, de onde partirão para mais um dia de trabalho ou de estudo, na capital. São os passageiros da Rápida!
Conhecem-se quase todos – companheiros involuntários dessa peregrinação pagã, pelo pão-nosso-de-cada dia do corpo ou do intelecto – alguns há décadas, outros há escassas semanas, e entre eles existe uma espécie de cumplicidade subterrânea de frequentadores habituais de uma azinhaga longa e sombria.
Ali chegados, sem palavras e sem se olharem, formam uma fila disciplinada segundo a regra consuetudinária do bom senso e da ordem e aguardam soturnamente a chegada do autocarro.
Em dia de folga, quando se cruzam fora do terminal, trocam olhares cheios de subentendidos, onde não falta uma ligeira distensão do pescoço, um imperceptível levantar de sobrancelha e um encolher de ombros – equivalência quase literal de um: ‘Livra, hoje safámo-nos!’.
Coisa diferente, são os encontros em tempos de férias – mormente se for na praia – em que num rasgado sorriso, a verem-se-lhes os dentes e a alma – os companheiros de viagem se saúdam, lançando vivas ao interregno, como se tivessem, de uma vez por todas, ganhado a batalha da locomoção forçada.
Às vezes, passageiros de olhar apreensivo, geralmente casais de meia-idade, destacam-se por não conhecerem a regra da fila, ignorarem a diferença entre o Expresso e a Rápida e procurarem comprar o bilhete ao motorista – no que são prontamente esclarecidos, com mais ou menos bonomia, mais ou menos condescendência, pelos costumeiros. São ‘o pessoal das consultas’ e não suspeitam de como a sua presença opera o milagre de fazer com que um árduo dia de trabalho surja, afinal, como um privilégio e uma bênção dignos do maior reconhecimento.
No final do dia, simultaneamente esgotados e lestos – num paradoxo que só os próprios entendem, lá se devolvem a casa, prontos para tomar as rédeas das suas vidas, pelo menos até à madrugada do dia seguinte, salvo, claro está, se for sexta-feira ou véspera de feriado, em que durante umas gloriosas quarenta e oito horas serão as mais bem-aventuradas criaturas sobre a terra.
E assim, esta verdadeira comunidade, apesar de fortuita e aleatória, corporiza mais um quadro do recorte de luz e sombra do quotidiano da nossa terra; do movimento pendular ao ritmo do qual a cidade respira e vai traçando a sua pequena História.
Conceição Henriques
Couto.henriques@gmail.com