Filipe e as sombras

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O Filipe vive numa casa com jardim. O irmão mais velho, Vicente, já anda no Ciclo, mas o Filipe ainda não entrou para a escola. Os pais de ambos trabalham fora todo o dia e quem toma conta do rapazinho é a Avó Mariana.
Não causa muita preocupação, nem dá grande trabalho. Já se veste sem ajuda, espera que lhe ponham as torradas e o leite na mesa, e desde que descobriu que as migalhas do pão agradam muito aos pássaros, depois de comer, recolhe-as na mão e corre lá para fora. Só regressa quando for chamado para almoçar. A Avó Mariana sabe que ele não vai abrir o portão e não há perigo nenhum ali à volta. Portanto fica descansada a fazer as suas coisas e de vez em quando espreita pela janela de um dos quartos, da sala ou da cozinha e vai vendo se lá fora tudo corre bem.
O Filipe coloca as migalhas num prato de barro que perdeu o vaso. Ou seja, o vaso partiu-se.
Depois pega nas suas ferramentas e começa a exploração dos canteiros, das três árvores de fruta e da relva. A caixa das ferramentas veio com o Pai para casa, com umas botas dentro. Era jeitosa, de cartão grosso e resistente. O Filipe vai colecionando instrumentos. Cordel que aproveita dos embrulhos, paus de giz, uma lupa que o Tio Bart lhe deu no Natal, binóculos,prenda de anos do Avô Valdemar, uma pinça que a Mãe já não queria porque estava já um pouco gasta, régua que o irmão o deixa usar. Até uma luvas estão na caixa, porque o Filipe viu a enfermeira que lhe fez as últimas vacinas a usá-las.
Ele perguntou porque calçava ela aquilo. A enfermeira Lisa explicou-lhe que havia animais tão pequenos que eram invisíveis para os olhos humanos, tão pequenos que era necessário aparelhos especiais para serem vistos, e esses animais causavam doenças graves se a pele não estivesse protegida.
-Mas e então é por causa desses animaizinhos que usa essa máscara na cara? Eles voam?
A enfermeira riu e disse:
-Tu és esperto, já percebi!
O Filipe pensou para consigo mesmo que aquele assunto já era uma grande novidade. Tinha de fazer a digestão de tudo isso, da mesma forma que a Mãe não o deixava tomar banho de mar com a barriga cheia de comida. A Mãe dizia:
-Tens de fazer a digestão! Ainda não podes ir para a água.
Ele portanto não podia fazer mais perguntas enquanto tivesse a cabeça cheia de curiosidade pelos tais bichinhos. Pediu umas luvas à Mãe.
Já no jardim decide ver onde está, no chão, a sombra da varanda do quarto dos pais. A varanda do andar de cima. Com um pau de giz branco risca o chão e traça a linha que acompanha a sombra. Mas apercebe-se de que a sombra se prolonga pela relva e fica indeciso. Não pode riscar a relva com o giz. Volta à cozinha e pega na caixa da farinha. Duas colheradas do fino pó branco passam para um saco do guardanapo. E corre lá para fora outra vez. Com todos os dedos da mão direita bem unidos vai deitando a farinha pela relva fora e marca o limite da sombra. No fim do relvado recomeça o cimento liso do parapeito que rodeia a casa. Aí volta a traçar o risco da sombra com o giz. Terminado este trabalho, em que andou a magicar durante vários dias, decide ir visitar as sardaniscas que vivem no muro que separa a sua, da casa da do vizinho.
Encontra um carreirinho de formigas. É estranho que elas andam sempre tão atarefadas como a Avó Mariana. Levam às costas pedacinhos de comida e outras coisas que nem com a lupa o Filipe consegue entender o que seja. As formigas não viajam todas para o mesmo lado. Há umas que parecem voltar para trás e outras que aparentam estar tontas e perdidas. Mas a maioria segue para um buraco do muro e lá dentro se enfiam e ficam escondidas. O Filipe já tentou espreitar para o túnel das formigas, mas não consegue ver nada. Senta-se no chão e fica a imaginar como será a vida delas dentro do muro. Ele ouviu contar a história da menina Alice que entrava num mundo mágico onde um coelho lhe dava ordens e lhe oferecia chá. Nessa história a menina conseguia aumentar e diminuir de tamanho e conseguia esgueirar-se, ora por sítios apertadíssimos, ora por largos salões de baile. Talvez que a pessoa que escrevera essa história tivesse uma coleção de lupas e outra dos tais aparelhos com que a enfermeira Lisa dissera que se viam os bichinhos que conseguiam entrar na pele. E com essas ferramentas conseguia ver a Alice. Mas, para já, o Filipe só queria seguir a sombra da varanda. Voltou ao local onde riscara no chão e na relva, com o giz e a farinha viu, com espanto, que a sombra, talvez assustada pelos seus riscos, tinha mudado de sítio. Fugira.
A Avó chamou para o almoço. Filipe estava com fome. E a avó perguntou:
-Então como foi a tua manhã?
E o Filipe achou melhor não contar que as sombras se movem e que finalmente entendera a verdadeira história de Alice.
-A manhã foi boa! Estava sol!

 

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