O espetáculo é para eles

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A influência anglo-saxónica tornou fevereiro no mês do Amor. Culmina a 14 de fevereiro, Dia de S. Valentim, mas o anúncio chega antes e estende-se ao longo do mês.
Interessa-me observar o tempo social (ou como ele nos regula). Após a entrada triunfante no novo ano, vem o Dia dos Namorados e depois, ou coincidindo, o Carnaval. De seguida, a Quaresma e a Páscoa (cuja programação crescentemente serve de cartaz turístico). E assim prossegue o ano, até chegar o ansiado Verão.
Os confinamentos dos últimos dois anos interromperam este ritmo. Superámos, disfarçámos a sua ausência, mas percebemos o seu papel na regulação dos entusiasmos comunitários.
Não sou contra as celebrações do Amor. O tema ofereceu-nos obras-primas, quer na cultura de matriz clássica, onde Eros e Vénus dominam o panteão, refreados pelo Amor Divino do cristianismo, até às mais variadas expressões das quatro partes do mundo. Mas, discuto a sobreposição destes epifenómenos importados, que abafam a genuinidade das nossas tradições. Em Portugal, temos o “nosso” Santo António; no Brasil, o Dia dos Namorados é celebrado a 12 de junho, vésperas deste santo casamenteiro.
Num tempo em que a ciência ainda não respondia com medicamentos e vacinas, a doença e a morte acercavam assiduamente a vida familiar. As fatalidades alarmavam o quotidiano de maior dependência homem – meio natural. A proteção divina, através da intercessão dos santos, era então a esperança e refúgio de anseios. Se pensarmos nas nossas festas populares, de janeiro a fevereiro, as pequenas capelas animam-se com as celebrações dos santos protetores contra as doenças (“pestes”, como então se dizia) e da bênção do gado.
Lembrando algumas da nossa região, comecemos pelo Santo Amaro em Alfeizerão; continuemos pelo Santo Antão, em Óbidos, Baraçais ou Salir de Matos; pelo S. Sebastião, em Valado dos Frades; até ao S. Brás, no Bombarral ou Nazaré. Às cerimónias religiosas, juntam-se as procissões nas ruas ornamentadas, a música das filarmónicas, os pinhões e as chouriças compradas ou leiloadas.
A maioria desconhece o martirológio e a origem das tradições, mas os oragos continuam presentes nos altares e motivam os festejos onde profano e sagrado se fundem.
A arte encontrou aqui um terreno fértil, nas imagens de pedra e madeira que centram os retábulos, até às pinturas e azulejos, como o conjunto maravilhoso que reveste a Ermida de S. Sebastião, nas Caldas da Rainha.
Razões diversas transpuseram muitas destas obras para museus. Aí, perderam a função primeva de intercessão com o divino, em favor da dimensão patrimonial. Que olhares diferentes contemplam os Martírios de S. Brás, de Diogo Teixeira, expostos no Museu Municipal de Óbidos e provenientes da Igreja de Santa Maria, ou os da Ermida de S. Brás no Bombarral, recentemente atribuídos a Baltazar Gomes Figueira, pai de Josefa d’Óbidos, e que um restauro fez remover para o museu local, esvaziando a parede onde o retábulo continuava a culto? Que significados adquirem estas obras conforme o local onde estão expostas; sobretudo, como são sentidas pela comunidade?
Neste universo do património cultural imaterial temos de referir o S. Brás da Nazaré. Talvez poucos saibam o que ali se passa a 3 de fevereiro. Algo único, que Valter Vinagre tão bem captou na série fotográfica que deu origem à exposição e livro “Ensaiar” (2005). Nazarenos de todas as gerações reúnem-se “ensaiados” (mascarados) no pinhal em torno do monte com o nome do santo; alguns sobem à ermida, mas todos se alegram entre assados e fogueiras, danças e marchas, numa festa que marca o início oficial do Carnaval, em espiral crescente até ao Dia de Cinzas.
Não faz parte dos roteiros turísticos? Não enche as montras das lojas? Ninguém se importa! Estas festas não se mostram para fora. Vivem-se a partir de dentro, estreitam a história comum. Como escreveu Alves Redol, “o espetáculo é para eles – esquecer e desabafar”.

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