Reconhecer é trazer continuidades ao mundo, sob muitas formas.
“Quando se canta uma melodia conhecida, o afeto varia e o sentimento espraia-se com a expetativa dos sons que estão para vir ou com a recordação dos que passaram”.
Nas suas Confissões, Santo Agostinho reflete sobre o tempo e sobre a possibilidade de medição da duração, recorrendo, como exemplo, ao som. Decomposto em sílabas e com durações relacionais, o som de cada parte de uma composição – uma palavra, uma frase e os seus silêncios – tem um início e um fim e a duração corresponde a este intervalo entre o passado e o futuro, que só se mede depois de passado, quando pretérito – o som de cada parte, imaginemos uma sílaba, compõe-se de três partes, aquela que lhe dá início, a que dura e a que termina a duração. O intérprete de sons na leitura, na cantiga ou de um instrumento musical, será tão melhor, quão melhor saiba modelar essas três partes com as outras, que constituem os repertórios sonoros atuais, passados e futuros do mundo.
Neste contexto, Carlo Rovelli refere que se nos limitássemos a escutar cada parte de cada vez, isoladamente, num mundo constituído como sequência linear de instantes presentes, ou por agoras sem relação, não nos seria permitido escutar e perceber o que cada parte do som faz com as antecedentes e com as que lhe sucedem. Não haveria melodias reconhecidas.
Ainda sobre a questão das partes, imaginemos um rosto de que só conseguimos ver uma parte de cada vez: um olho, depois uma narina, depois o outro olho, sucessivamente até termos conseguido ver todas as partes relevantes desse rosto, em tempos diferentes sem as conseguir integrar numa simultaneidade. As agnosias visuais produzem uma decomposição nas cenas visuais, dificultando a integração das partes que as compõem num todo coerente para quem observa. Como se o som das sílabas não tivesse um antes e um depois, ou uma duração entre pretéritos. Nessas circunstâncias, a composição da cena visual processa-se pela justaposição das partes, como blocos de memória, sem relações fluídas entre si.
Quando aprendemos a desenhar à vista dizem-nos para começar pelo todo.
Reconhecer não tem de ser fácil, nem tem só uma maneira. Reconhecer é prever, é uma construção do tempo sobre nós, em que a memória indica o futuro, agora.