Estou convencido que, apesar do que George Steiner diz dos cumes das artes — expressão irónica de Thomas Bernhard —, na sua relação com a sociedade, referindo o modo como os nazis instrumentalizavam música — erudita — e músicos, nos campos de concentração que, dependendo dos modos de fruição e socialização das artes, é possível a utopia — um caminho para lá — de uma cidade de artes porque cidade de artistas, artistas criadores e espectadores capazes de ler/ficcionar.
Na tradição burguesa a arte surge com aquela aura intangível de algo sempre excepcional e próprio de génios, um dos mitos maiores é o da inspiração. Se alguma verdade há nesta característica, que muitas vezes leva o nome de talento, também é verdade que a genialidade, sem muito trabalho, não chega lá. Um pianista, num dado estádio da sua capacidade de tocar, não aperfeiçoa as qualidades dos seus modos de interpretar/tocar — exercício de mãos, Maria João Pires chegou a romper os músculos de tanto as abrir — sem um infinito treino diário e sem, muitas vezes se esquece este aspecto, viver sempre com teclas na cabeça. Um artista, além dos horários de trabalho que remetam para o seu artesanato, não fecha “obra” como quem fecha a loja. O seu trabalho é, para além dos horários, sem horário, a tempo integral. Mesmo a dormir, no que sonha, vai reelaborando o que está sempre a laborar — implica a psique como um todo, o subconsciente, a libido, a criação é sexuada.
O trabalho criativo das escritas, no teatro, na poesia, na música, na composição orquestral, na direcção física de um projecto cénico, em filmagens, no que é ser-se maestro, é sem fronteiras. O criador é de algum modo “possuído” pela criação e é a “obsessão” que o toma, que conduz os seus dias, horas públicas e íntimas. Muitas vezes a solução de um problema, a descoberta de uma palavra, uma intuição ritmica, uma posição no espaço, vêm quando menos se espera e já se desespera. Nas artes, quando a parede cega se interpõe e tudo parece sem saída, uma janela aparece. Se a pulsão criativa do artista for real, pois. Este processo interior do trabalho dos artistas creio que possa ser também, de um outro modo, o processo criativo de elaboração do leitor, do espectador, do ouvinte, do que é capaz de “ouver” sendo capaz de empenhar todos os seus sentidos e a inteligência, as referências culturais, nesse exercício de leitura que é o do fruidor.
É nesta perspectiva que entendo que as artes podem ter um papel mais activo na formação do sujeito sensível/cívico das populações. Poderíamos de facto viver num “Estado Estético” se fruíssemos a realidade de um modo em que uma generalizada partilha do sensível influísse. Creio que Caldas da Rainha tem essas potencialidades, as de ser uma cidade em permanente possibilidade de vivências estéticas alargadas, tem uma escala que permite realizar esta prospectiva, utopia concreta. Creio que desse ponto de vista bastaria associar em projectos articulados o que está separado, quebrar fronteiras de preconceito, juntar instituições e mesmo ultrapassar limites entre artes e artistas. E lançar um projecto que seria único em termos nacionais e europeus. Para isso seria necessário não só combater egocentrismos tribais quanto certos arcaísmo rotineiros.
Fernando Mora Ramos
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