A tradição centenária da pastelaria caldense não tem correspondência nos estabelecimentos de pastelaria que nas grandes cidades europeias copiavam o estilo das «patisseries» parisienses. A loja de pastelaria (ou confeitaria, como na altura se chamava) está ausente nas edições do Almanaque Comercial de 1885 a 1890, nas quais se faz referência a duas padarias, dois restaurantes e 15 mercearias, na Praça Maria Pia e artérias adjacentes .
A loja de pastelaria haveria de surgir pouco tempo depois, e veio para ficar. Nasceu junto ao Hospital Termal, por iniciativa das «irmãs Faustas», transferindo-se depois para a Rua de Camões. As proprietárias não tinham herdeiros e deixaram o estabelecimento a um zeloso empregado, de seu nome Machado, que deu à loja, para além do nome, a dedicação de uma vida. Machado era casado com uma tia-avó do meu amigo Carlos Mendonça, que me contou que esta sua familiar nunca viu o mar, porque passou toda a sua vida em frente do fogareiro das trouxas-de-ovos.
Esta pastelaria caldense não se celebrizou apenas com as trouxas-de-ovos, mas também com as raivas, as cavacas, os russos e um bolo-rei que durante décadas não teve rival, devido ao segredo da sua receita, parcialmente revelado por Peregrina Molares (proprietária do estabelecimento, falecida em 30.08.2016): a massa demora pelo menos oito horas a levedar e as manteigas e fermentos são todos tradicionais.
O mais famoso bolo-rei caldense sobreviveu à República, que não gostava da designação, porque recordava a defunta monarquia. O semanário caldense Viroscas, republicano assumido, «Imparcial com pretensões a humorístico», na edição de 10 de janeiro de 1915 descreve com ironia a frustrada tentativa republicana de acabar com a designação do “Bolo-Rei”, que foi “Bolo Nacional”, depois “Bolo Presidencial”, finalmente “Bolo Português”, sem êxito, porque, como diz o cronista: «não se muda de repente, uma tradição de séculos».
A doçaria caldense típica não se fica pela tradição. A par das cavacas, das trouxas-de-ovos e dos beijinhos, eis que surge um novo doce associado à nossa cidade e ao seu mais ilustre filho adotivo: o Pastel Bordalo. Não podia ter sido mais feliz a escolha do nome.
A profunda marca de prestígio e de modernidade que Rafael Bordalo Pinheiro nos legou projetou o nome da cidade no país e no estrangeiro. É uma marca que nos continuará a prestigiar. Longa vida ao novo pastel caldense, ao qual faço um brinde com a cerveja do mesmo nome. Até para o ano, quando chegar a nova silly season!
1- Citação baseada no estudo de João B. Serra «Caldas da Rainha, 1887 – 1927: Expansão e Modernidade», Terra das Águas Caldas da Rainha Cultura e História, CMCR, 1993.
2- Em entrevista dada ao Jornal das Caldas em 31.12.2008.
Carlos Querido