Sibarita

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Era uma noite muito sombria. Estalava o vento, soprava a chuva em rajada, o frio entrava pelas frinchas das portas. Agreste.
Lá fora, no jardim, a raposa Sibarita, enrolada em si mesma, o focinho trémulo, as orelhas espantadas, tentava perceber quantas horas mais teria de esperar.
Sentia a barriga muito dorida. Estava próxima a hora de os filhotes raposinhos saírem e conhecerem o mundo que os rodeava.
Era primavera, mas o mau tempo tinha-se prolongado e tinha apanhado a Sibarita desprevenida.
Ela não queria que os filhos nascessem por umas horas tão desamparadas.
Não era a primeira ninhada! Ela sentia que estava próxima a altura do leite lhe correr no peito para os alimentar.
Quanto mais calor conseguisse acumular no corpo, mais os filhos, quentinhos, se deixariam estar, lá dentro de si mesma, aconchegados.
Lembrou a primeira vez que tinha estado de parto! Isso aí fora grande susto e grande dor, aumentados pelo desconhecimento de como tudo se iria desenrolar!
Fora a ninhada em que tivera a Sila, a Siba e a Rita! Três belas raposinhas que agora também já eram mães de família responsáveis.
Ainda há poucos dias as encontrara junto da cerejeira brava. Também estavam de barriga avantajada e cada uma mais satisfeita e bonita do que as outras!
Ouviu um ruído ali perto. Pareceram-lhe as botas do jardineiro Tobias. O Tobias de quem ela sempre fugia, encantada com a sua própria esperteza e velocidade.
Mas hoje estava moidínha de todo. Sabia que o jardineiro não lhe queria fazer mal, ele às vezes até lhe deixava umas maçãs. Mas ela, ela Sibarita, é que porfiava no seu orgulho ladino e não se deixava enredar nas ternuras do Tobias.
Afinal haveria motivos para confiar nos humanos? Todos eles, grandes, feios e pesadões podiam trazer danos à comunidade dos quatro patas selvagens. Distância, com eles, era o mais seguro!
A chuva redobrou de intensidade. O vento soprou tão forte que até um ramo da árvore do fundo do jardim partiu e foi arrastado. Sentiu o frio nas almofadinhas das patas.
_Ai meus ricos filhos, deixem-se estar aí quietinhos, isto aqui está muito mau para nascerem agora!
As botas de borracha do Tobias rangeram no caminho.
Sibarita a fazer-se forte, mas mesmo cansada. A barriguita a doer, e este tempo danado!
Enterrou o focinho entre as patas e fechou os olhos!
Ouviu um remexer e um rumorejar.
Que grande aflição. As pálpebras muito cerradas, a coragem a fugir-lhe.
Um estrondo de trovão abalou a noite. O clarão do relâmpago iluminou o jardim.
O jardineiro Tobias já ia a afastar-se, lá ao fundo, em direção à porta da garagem.
Mas tinha deixado alguma coisa inesperada.
A Sibarita, angustiada, levantou o focinho e abriu os olhos enevoados de lágrimas.
Uma velha cesta da fruta estava ali deitada, mesmo à pata de semear. E dento havia uma manta de lã macia, que ela há muito cobiçara, de a ver no banco de trás do carro.
Começou a esticar-se, agora cheia de esperança. Avançou uma e depois outra pata. A barriga a doer muito. Foi o tempo de se enfiar na cesta e começar a sentir a proteção do calor daquele ninho que o Tobias lhe tinha trazido. O primeiro filhote saiu, húmido e a tremelicar. Coisa mais linda para afagar! E depois, mais um e mais outro. Delicadamente, com enorme ternura, a Sibarita aconchegou os pequenotes, limpou-os cuidadosamente com a língua. Encantada, agora já quase sem dores, a sonhar com as correrias que faria com eles no verão, a ensiná-los a caçar!
E, o Tobias?
A Sibarita viu-se a si mesma, na primavera,mais tarde, a fazer uma espera ao bom do jardineiro. Esta primavera havia de ganhar coragem para se lhe encostar à perna, quando ele, como costumava, descansasse os braços na enxada.