O convite surgiu, inesperado há pouco mais de um ano. Pequenas crónicas para a Gazeta? Desafio irrecusável, o de fazer um bocadinho parte do jornal que sempre fez parte de mim, de todos nós.
E as crónicas foram-se escrevendo. Sem qualquer plano, à medida do acaso e do que mais marcou os meus dias. Hoje, relendo de atravessado o que escrevi, dou-me conta de que talvez esse ‘acaso’, essa fortuita escolha, revele muito mais do que eu mesma esperaria.
Por aqui passou o olhar de criança de quem vinha de Óbidos a Caldas aos sábados de manhã, entre as praças e a rua das montras. O espanto de ser da província e chegar a Lisboa, num tempo em que a cidade era longe. O adeus à prima Elvira e a um mundo que não volta. O antes e o depois do 25 de Abril, na vida de quem tinha 8 anos nesse tempo mágico. Os ritos que, em cada ano, davam vida à Primavera. O primeiro dia de escola e o modo como hoje ainda a nossa vida se mede pelo calendário escolar. Também as palavras de João Miguel Fernandes Jorge a dizerem Caldas e Óbidos.
Mas também aqui ficaram as eternas picardias entre Óbidos e Caldas, e os desafios de trabalhar em conjunto. As dificuldades em lidar com os animais por parte dos poderes públicos. A tentação de tudo controlar por parte de alguns desses poderes. A boa oferta cultural do Verão passado. E o mau estado do cemitério de S. João. E ainda o encerramento dos Correios. Ou as escolhas orçamentais por parte da maioria que governa o Município de Óbidos.
Intencionalmente fugi a transformar este espaço numa tribuna político-partidária, o que poderia ser uma tentação para quem é membro da assembleia municipal… Não fugi, porém, a temas políticos. Nas histórias e memórias que contei, nas críticas que fiz, sobressai claramente um tema central. A Vila de Óbidos e as transformações por que passou nestas últimas décadas. De Vila habitada, cheia de vida, de pessoas, vila vivida, pulsando e respirando, a um espaço comercial, que vive de negócios e do qual as pessoas são afastadas. Quantas pessoas permanecem em Óbidos e fazem da Vila a sua casa? Qual o sentido da recuperação do património arquitetónico – que se louva – sem a recuperação do património vivo, das pessoas que fazem de Óbidos um ser vivo? Que crianças brincam hoje no Largo de Santa Maria? Ninguém quer Óbidos transformado num museu, inanimado, visitável das 9 às 5, mas o que se faz para evitá-lo? Este é, porventura, o maior desafio que se coloca a Óbidos. Aos poderes públicos certamente, mas também a toda a comunidade.
Deixo bem vincada esta preocupação, que esteve presente em cada crónica. E volto às memórias.
No dia 1 de fevereiro celebra-se a Senhora da Graça. Festa rija em Óbidos, ainda hoje. A porta da Senhora da Graça ou do Vale, uma das portas da muralha, tem uma capela dedicada à Virgem, que vem do século XIII, cuja história não tenho espaço para contar.
Em 1727, a capela de Nossa Senhora da Graça foi reformada por Bernardo de Palma, magistrado que serviu na Índia, em memória de sua filha que morreu de amor, aos 22 anos, por seu pai não consentir no amor que tinha por um jovem de Óbidos.
A antiquíssima imagem venerada na Senhora da Graça está na Igreja de Santa Maria, por razões de segurança, há muitos anos. Em nossa casa, paredes meias com a igreja, a fé nesta Senhora era imensa. E, por isso, todos os anos, por estes dias, os meus irmãos e eu éramos cuidadosamente medidos e uma vela do nosso tamanho ardia durante os dias 1 e 2 de fevereiro, no altar próprio, penhor da nossa vida e saúde no ano que começava ali e acabava um ano depois.