Um sistema público das artes

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Fernando Mora Ramos

Caldas é uma cidade que, na sua escala, se pode caracterizar como “de artes”. Há um conjunto de instituições e estruturas de criação, O Teatro da Rainha, o Museu Malhoa, o do Hospital, o da Cerâmica, etc., o CCC, de activistas culturais, orquestras, coros, empresas de saberes artesanais, fóruns de acção artística, iniciativas regulares, exposições de todo o tipo, espaços alternativos, equipamentos de grande nível, tradições artísticas ligadas à cerâmica, escolas, nomeadamente a ESAD e o Conservatório, que são, em potência, na medida em que possam co-agir numa dada perspectiva e prospectiva, a possibilidade de uma vida de fruição intensa e regular de acontecimentos de natureza artística. O “fenómeno” — fenómemo e não epifenómeno, enraizamento e não evento, regularidade produzindo o não previsível (a arte não é normativa) — que não seria nem pontual nem rotineiro, viveria não apenas de um calendário mas de conexões que talvez não sejam óbvias, mas sim possíveis. Para o que será necessário algum arrojo e a descoberta de que as formas compartimentadas de exercer as artes, o fechamento “tribal”, ou disciplinar, ou mesmo de localização, de fronteira “social”, não levam a uma qualificação do todo artístico-criativo existente e por inventar, que posssa estar contido na associação dinâmica da diversidade criativa-artística das instituições radicadas.
O que é que eu quero dizer? O exacto contrário do que se diz quando se diz que a oferta é ampla e que cada um pode escolher o seu “nicho de gosto”, encarando a cidade como um hipermercado com as instituições colocadas em prateleiras.
Ao contrário do ponto de vista vulgar — que afirma o gosto confundindo gosto com “eu gosto”, o que se diz de um gelado, mas também de uma pintura com a mesma facilidade interpretativa e espontaneidade de bolso — o gosto, no plano estético, educa-se. É uma aprendizagem num campo fértil e vasto que não estará para a criança pré definido, tanto podendo esta optar pelo piano, caso possa — pianos em casa contam-se pelos dedos de uma mão — quanto pelo saxofone, pela pintura, pela dança ou teatro. É um caminho a definir-se entre vários, um treino, finalmente um modo de ver, de gostar. Isto muito resumidamente. Em boa verdade, crescer numa família para quem a tradição musical é nula é uma limitação — o mesmo se pode dizer da agricultura, eu sei. O que nunca conheces — é assim num percurso de vida — não é, em si, objecto de opção, mesmo que seja pressentimento de gosto. Um afinado — ou desafinado — desconhecedor da linguagem musical, pode “gostar” de tal harmonia que lhe caia no ouvido. Complicado será considerar a música contemporânea erudita, ou a clássica árabe, entre as fronteiras do que possa gostar.
Ler o real é uma questão de alfabetização — a mundividância específica em que se circula gera uma sabedoria restrita. O senhor da frutaria sabe da balança, a dos legumes, se são frescos ou não, mais que o “cliente” que julga o aspecto. As maçãs enganam, as mais polidas menos sabem. Todos os aspectos da vida implicam linguagens, descodificações complexas, níveis de descodificação. As artes também. A arte de ser espectador também. Assenta na repetição e na possibilidade comparativa. É mais evidente para as artes sociais — o teatro — esse acesso à leitura. A chave do que se lê é fornecida no acto de ler. É um mundo novo, este da confluência das artes, pensando cidade. E uma ideia forte para este milénio, se a tragédia climática for combatida — as artes têm aí um papel.

Fernando Mora Ramos
fernando.mora.ramos@gmail.com